Festival Curta Campos do Jordao

Deixe-me

A negação do afeto

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2023

Deixe-me

Jeanne Balibar é uma diva do cinema, alguém que ocupa um espaço no imaginário do público de forma sutil, mas consistente. Diva: divindade feminina, deusa; ou, no sentido figurado, mulher da qual alguém fez sua musa inspiradora. Como é possível alguém com esse perfil discreto, (falsamente) insípido, mas (aplicadamente) atraente, ter chegado onde chegou? Aos 56 anos, em plena forma, Jeanne protagonizou Claudine em “Deixe-me” – uma costureira no interior da Suíça francesa, perto da Barragem Grande-Dixence, a maior do mundo em altura, em Valais. Uma vida pacata, dedicada ao filho, portador de um distúrbio congênito neurológico de movimentação, tônus muscular ou postura, provavelmente em função de paralisia cerebral durante a gravidez.

Todas as terças-feiras, porém, Claudine toma o trem e o teleférico, e vai para o hotel de montanha perto da barragem para encontrar homens que ali pernoitam. Ela é direta: conversação em torno da cidade onde moram, seguida do convite, vamos para o seu quarto? Eles, em geral de partida no dia seguinte, parecem não entender – um deles oferece dinheiro, que ela recusa, gentilmente. A situação se repete, como dispositivo de linguagem, proposital, lento, um desejo mecânico que se instala no cotidiano minimalista de Claudine. Algo que lembra, em outro registro, “Bela da Tarde”, e também “Jeanne Dielman”, aquela que habitava no número 23, Quai du Commerce, em Bruxelas.

Dividida entre o aroma sensual das montanhas e a provação diária do cotidiano, Claudine se oferece aos homens que passam – ela, afinal, é inamovível, fixada na realidade que a circunda. Uma vida (e um drama) aparentemente simples, mas que esconde uma complexidade silenciosa no que toca a identidade feminina. Claudine está constantemente alternando entre identidades – mãe atenta, cuidando de seu filho, costureira, atenciosa com a clientela – culminando na franqueza do diálogo com os parceiros eventuais.

Destarte, “Deixe-me” tem o registro do afeto – quando um dos homens decide prolongar a estadia por ela, Claudine vê seu dia a dia virado de cabeça para baixo e começa a sonhar com outra vida. O cenário imutável em que ela circula, paisagens montanhosas do Valais, vacas nos prados, uma enorme barragem, o hotel …tudo se transfigura. Claudine não era, em absoluto, uma pessoa entediada: sabemos muito pouco o que se passa na sua cabeça, as poucas frases que pronuncia não dizem muito, seu sorriso, afetuoso e enigmático, tampouco. Mas estava sempre com boa disposição, elegante. Quem diz muito é o seu corpo – seu desejo, sua volúpia – que, transfigurado pela possibilidade de condensar sexo e afeto, decide romper a circularidade da rotina.

A essa altura o mundo, para Claudine, parece sugerir um permanente deslocamento de volumes – visitando o interior da barragem, seu amante, aquele que prolonga a estadia, chama a atenção para as centenas de milhões de litros de água represados, ali, do outro lado do vidro. Um bouleversement, uma potência de transformação que atinge em cheio a existência regulada de Claudine. A expressão calculada de Jeanne Balibar, a atriz, se dispersa, se contrai e se distrai: seu rosto anguloso, a composição entre a boca e os olhos, se difratam – Claudine, enfim, está apaixonada, tudo parece fora do controle, o mundo gira e a lusitana roda, diria a sabedoria popular.

Deixe-me” – o título do filme, exibido na mostra ACID em Cannes, 2023, traz embutida, entretanto, uma ideia de armadilha sensual. Ou ainda, uma ideia de negação de afeto. O velho Freud definiu uma vez: os afetos e os sentimentos correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sensações. O corpo de Claudine pensa através das sensações, ela se percebe inteira – e, num rompante, vira a chave a nega o afeto.

Este é o primeiro longa-metragem de Maxime Rappaz, diretor franco-suíço. Um crítico notou que a presença de Balibar é tão envolvente que qualquer adjetivo usado para descrever a encenação descreveria, também, a performance da atriz. Jeanne Balibar, como se sabe, é filha do filósofo Étienne Balibar e a física Françoise Balibar: Étienne, marxista pragmático, foi coautor com Louis Althusser em um dos livros mais lidos dos anos 60, Lire le capital. Não é fácil crescer num ambiente intelectualizado desses e se tornar profissional do entretenimento, cinema, teatro e música (Jeanne também é cantora).

Seu estilo discreto e magnético vem talvez dessa confluência de universos – administrada, claro, com perspicácia e sutileza.

4 Nota do Crítico 5 1

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