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Crítica: Onde Está Você, João Gilberto?

Finalidade sem fim

Por Michel Araujo


O formato de documentário tem uma particularidade que o faz ultrapassar em certos aspectos as potências da ficção, que é seu status de “verdade”. Por utilizar da própria realidade como instrumento de representação de si mesma, possui o poder de instigar uma reflexão sobre o próprio real muito mais complicada de se contestar do que o texto ficcional. Para além disso, os mecanismos estéticos que subvertem o material cru da própria realidade nos permitem, a partir do contato com a obra, ver a vida real através dos olhos do cinema, aproximando-o ainda mais da experiência da vida. Filmes como “Onde Está Você, João Gilberto?” (2018) tem, portanto, capacidade de em certa medida alterar nossa percepção da própria realidade, através da experiência de entrar em contato com a mesma sob um manto diferente do que usualmente experimentamos: o da própria arte.

O documentário em longa-metragem do diretor franco-suíço Georges Gachot (“O Samba”, “L’ombrello di Beatocello”) trata de seguir os passos de Marc Fischer em sua obra “Ho-ba-la-lá: Em Busca de João Gilberto”, onde o autor alemão entrevista diversos conhecidos de João – cantor, violonista e pioneiro da Bossa Nova – e anseia encontrá-lo pessoalmente para que este tocasse o clássico “Ho-ba-la-lá” de seu primeiro disco “Chega de Saudade” em um violão centenário. Na trajetória do filme se estabelecem, portanto, duas camadas de narrativa, a de Fischer seguindo os passos de João Gilberto, e a do próprio Gachot – narrador e protagonista do documentário – seguindo os passos de Fischer. No processo, Gachot entrevista as figuras que o próprio Fischer entrevistou como Míucha (cantora e ex-mulher de João); Raquel, a correspondente brasileira que o alemão dizia ser como “seu Watson”, em referência ao detetive fictício Sherlock Holmes; e mesmo o cozinheiro do restaurante favorito do músico. O recorte biográfico construído nesse processo se revela um mosaico incompleto por natureza; um enigma que simultaneamente é sua própria resposta.

O gancho que Georges Gachot pega para a elaboração do documentário, entretanto, vai para além da pequena crônica do autor alemão apaixonado pela música brasileira. Em se tratando de uma pesquisa sobre uma pesquisa – ou uma narrativa sobre uma narrativa –, emerge um caráter analítico mais complexo, em que o temas universais da compreensão do artista, do culto à personalidade, e dos recônditos canais criativos da genialidade de autores do porte de João Gilberto. “Onde Está Você, João Gilberto?” (2018) indaga questões muito mais amplas do que o título da obra nos levaria a ingenuamente acreditar. E as respostas que o diretor encontra ao longo do caminho – ou melhor, uma certa ausência delas –, se converte na cinematografia do longa. A câmera manual que vaga por longas tomadas nos diálogos de Gachot com as figuras em seu caminho, os vazios na composição dos planos, o silêncio que por vezes permeia o espaço sonoro. Talvez a mais icônica das cenas em todos esses quesitos seja o momento que Georges adentra o lendário banheiro cuja acústica foi o berço para as composições de João. A câmera percorrendo os detalhes corriqueiros do tão ordinário banheirinho azul, o vazio sonoro que preenche o espaço entre as breves narrações, o olhar estarrecido do diretor enquanto se ouve a indubitavelmente emblemática fala: “a Bossa Nova nasceu numa latrina”. Nessas poucas palavras, Gachot sucintamente nos entrega o reconhecimento de ter dado um passo em direção a um abismo de incompreensão. Incompreensão que não é senão natural e saudável. A paradoxal distância necessária entre o artista e o público para que os dois se conectem como seres humanos através da arte.

Aviso de SPOILER: a conclusão da obra, uma poderosa cena de Gachot imóvel num corredor de hotel vazio diante da porta do quarto de João Gilberto – momento em chegamos o mais perto possível do cantor em pessoa – a ouvir seu violão ressoar de dentro do cômodo, nos revela que o artista não pode ser encontrado, pego e dissecado, disposto de forma clara e absoluta para o público. A obra conclui não apenas sobre o fenômeno do culto à personalidade, mas da intangibilidade do recorte biográfico, que ambos sempre serão meramente uma trilha de fumaça que não nos leva a nenhuma certeza sobre a essência do artista, apenas a mais curiosidade e dúvida. E assim sua imagem deve permanecer historicamente, pois uma vez que o artista e sua obra forem de fato “completamente entendidos”, seu trabalho põe um fim a si mesmo. A experiência da arte e o questionamento acerca desta são um fim em si. A realização do público está no processo, e não numa resolução. Portanto é elementar que nunca saibamos responder “onde está João Gilberto”. Nossa própria busca por ele é o que mantém e manterá a nebulosa matéria da arte para sempre viva.

4 Nota do Crítico 5 1

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