Ainda Não É Amanhã
A construção intimista do agora
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2024
Exibido na mostra Novos Rumos do Festival do Rio 2024, “Ainda Não é Amanhã” representa um ativo exemplar do Novíssimo Cinema Brasileiro, em que sua estética narrativa naturaliza o cotidiano, o humanizando com a organicidade nas ações triviais e rotineiras do dia-a-dia. Talvez seja assim esta cinematografia pernambucana (e de especificidade recifense): descolonizar a criação com verdade emocional e memória afetiva. É como se esses filmes quisessem recapturar a sensação nostálgica do antes com a reconstituição realista do agora. E se afastar completamente da experiência superficial destinada a uma audiência mais Netflix de ser. O que assistimos em “Ainda Não é Amanhã” é uma observação, ainda que ficcional, mas com tom-percepção documental, da própria vida acontecendo (numa câmera mosca, de invisibilidade subjetiva, que capta os momentos já na ação), especialmente em seus instantes de espera, que antecedem as decisões. Este filme acontece nesse intervalo entre os tempos do pensar e o agir.
Podemos dizer também que “Ainda Não é Amanhã”, estreia na direção de longas-metragens da realizadora recifense Milena Times), é um filme de situações (com um que de Efeito Borboleta), em que uma escolha interfere no resultado consequente e de temporário final. Esta obra, de autoralidade neon-coloquial, tem sotaque local, tem o sensorial realismo editado de sentir o vento do elevador enquanto uma personagem dorme (numa atual almofada de emoji); de ouvir o desconforto do barulho dos carros atravessando; de ser conversado numa liberdade direta e super naturalista do falar sobre temas reais (o dinheiro, as fofocas). Sim, poucos filmes causam isto: o de querer “morarmos” nele por ser tão bem convidativo). A cidade também é apresentada. As personagens também são organismos co-dependentes desse atravessamento, entre a rodoviária e entregadores de comida por aplicativo, em seus tempos específicos e leis próprias sociais.
“Ainda Não é Amanhã” é também um filme feminino. São três gerações abordadas: a avó, a mãe e a filha, cada uma sobrevivendo a seu jeito, entre a moral, a ética, a família e o direito. Sim, é uma obra entre espaços e cada uma delas precisa descobrir e resolver seus “perrengues” indivíduo-existenciais. A maestria deste longa-metragem está em acreditar no seu potencial, em permitir se desenvolver pela despretensão, desconstruindo o preciosismo das vontades do próprio roteiro. Ao imprimir a metafísica, o sonho resposta, a projeção acordada e o fluxo de pensamento enquanto o processo-jornada é feito, nós , espectadores, criamos identificação-sinestesia com os dramas da protagonista, que precisa lidar com uma questão à princípio tão banal de nossa sociedade, mas que mudará sua vida e suas perspectivas para sempre. Quanto mais assistimos “Ainda Não é Amanhã”, mais referenciamos de uma forma muito positiva o filme “Levante” (2023), de Lillah Halla, porque nós observamos essa vida possível, vulnerável e sem controle sendo contada.
Tudo em “Ainda Não é Amanhã” caminha pelo “se” do futuro. Como disse, numa projeção da verdade, que depende da decisão do momento difícil para se tornar real. Aqui, o filme nos conduz pela normatização sagaz e articulada das reações, e nunca pelo sensível, dramático e didático. Tomar ou não o chá não vira um evento. Pelo contrário. É apenas uma possibilidade de sim ou não. Nada aqui tem o formalismo para acontecer (à moda talvez do romeno “4 Meses 3 Semanas e 2 Dias”, de Cristian Mungiu). Sim, Milena tem uma forma muito precisa de traduzir o tema escolhido sem a “cara” de filme gritado. Este longa-metragem é um estudo de caso intimista. Do micro para discutir uma problematização do macro social. O filme quer a mensagem de que a coletividade que vivemos é feito por seres individuais, únicos e completamente diferentes uns dos outros.
“Ainda Não é Amanhã” é um retrato lente-de-aumento em uma questão que atinge muitos jovens, que vivem sob a perspectiva moral das “culpas religiosas” e de um conservador imaginário popular mais limitado e retrógrado. Para quem sofre (especialmente pelos “sonhos interrompidos”), céu e inferno são etapas transitórias da própria rotina de um dia comum. Outra maestria desta obra é seu elenco, irretocável e ultra naturalista para colocar em tema o coloquialismo orgânico das emoções reais, em especial às atrizes Mayara Santos, Clau Barros e Cláudia Conceição. Pois é, na contemporânea linguagem dos jovens, nós podemos dizer que “Ainda Não é Amanhã” é uma “delícia” de filme.