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Crítica: Blade Runner 2049

Quem Cria as Memórias?

Por Fabricio Duque


Há quem enxergue uma aura deprimente de pessimismo, catástrofe e melancolia em filmes pós-apocalípticos, mas a verdade é exatamente contrária. É recompensadora. Quando nós retiramos excessos, nós então fornecemos o caos, a possibilidade revisora de retensão e um libertador extermínio,  temos um cruel e mórbido sentimento esperança e acalento. E um recomeço pela simplicidade de não se ter mais nada. “Blade Runner” é assim.

Baseado livremente na obra literária baseado no romance “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de Philip K. Dick, o filme de Ridley Scott potencializa, com atmosfera soturna, artificial, futurista, conceitual e existencial, na fotografia neon que ajuda a traduzir uma superficialidade das relações sentimento-afetivas, essa destruição planetária pela culpa de seus próprios humanos que buscam “acordar” a escravidão com a criação dos replicantes (robôs mais ágeis, fortes e inteligentes), extraterrestres com imagem, semelhança e realidade. Busca-se o consumismo exacerbado e novas formas de colonização em outros planetas.

Quando um grupo dos robôs mais evoluídos provoca um motim, em uma colônia fora da Terra, este incidente faz os replicantes serem considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. A partir de então, policiais de um esquadrão de elite, conhecidos como Blade Runner (Caçador de Andróides), têm ordem de atirar para matar em replicantes encontrados na Terra, mas tal ato não é chamado de execução e sim de remoção.

Se no longa-metragem de 1982, o futuro era obscuro e decadente, em “Blade Runner 2049”, sua continuação em questão aqui, dirigida pelo canadense Denis Villeneuve, o cenário é ainda mais degradante e desesperançoso. O mundo piorou. Está mais sombrio, enevoado e poluído, impedindo a resiliência do sol e estimulando a metáfora do vazio resignado.

“Blade Runner 2049” contesta a transformação de nosso mundo comportamental. A escravidão está proibida (“Perdemos a coragem de escravizar”, diz-se). Os replicantes (da empresa Tyrell Corporation) antigos são “aposentados” compulsoriamente. A Califórnia daqui é mais plural que a de 2019. Novos povos, novos imigrantes, novas línguas, novas comidas, mas a logo da Coca-Cola permanece intacta e suntuosa. Agora, o cenário aproxima-se da cidade de Tóquio, com mais futurismo, à moda do encontrado em “O Vigilante do Amanhã: Ghost In The Shell”, de Rupert Sanders.

Trinta anos após os acontecimentos do primeiro filme, a humanidade está novamente ameaçada, e dessa vez o perigo pode ser ainda maior. Isso porque o “cyberboy” novato oficial K (Ryan Gosling) que quase ganha ser Joe, desenterrou um terrível segredo que tem o potencial de mergulhar a sociedade no completo caos. A descoberta acaba levando-o a uma busca frenética por Rick Deckard (Harrison Ford), desaparecido há 30 anos.

A narrativa do filme está em seu elemento sensorial, em sua essência orgânica, em sua música cósmica psicodélica que cria variações do grupo Vangelis (originalmente do filme de 1982) e em seus detalhes inteligentes e perspicazes, que servem como pistas conectivas. Minhocas “proteínas”; “não se importar com a sujeira”; partos; a androgenia das prostitutas; os olhos retirados; os ossos encontrados; a sequência de ‘origami’; a flor encontrada com vida; retornar “antes da tempestade”; os testes psicotécnicos; Frank Sinatra, Elvis Presley e Marilyn Monroe; o amor holográfico (aos moldes de “Ela”, de Spike Konze, que busca ser platônico como auto-proteção fugidia) tudo constrói, com domínio absoluto, sua ambiência realista, de visual esteticamente poético, de violência justificada e de suas frases sarcásticas-definidoras como “só modelos antigos fogem”, dito pela nova versão de um “capitão do mato” na cidade cosmopolita.

“Blade Runner 2049” é o “Mad Max” fora das areias. É “Matrix” quando tenta “enganar” os olhos com comida e múltiplos vícios para passar o tempo. De transformar o irreal no real. É o muro “que divide as espécies”. É a “salvação” na “especial” criança “escolhida” da “pré-proibição” e do “pré-blecaute”. É a nova ideia dos “anjos” do holocausto. De brincar de ser Deus. Só que desta vez, aceita, estimulada e digital. Não há como não mesclarmos as referências de “Ex-Machina”, de Alex Garland com “RoboCop – O Policial do Futuro”, de Paul Verhoeven com “THX 1138”, de George Lucas.

Aqui, lembranças são inventadas, imaginadas e implantadas. A lógica, um definição de ser. A frieza, um estado de equilíbrio, mas com algumas lágrimas pontuais para manter o protocolo. “Meros códigos fazem um humano”, diz-se sobre “metades mais elegantes”. K sai do óbvio e procura além. Encontra “jaulas” existenciais e jogos psicológicos.

“Blade Runner 2049” critica a sociedade, o capitalismo e o deturpação de poder (quando um negro que já sofreu as mazelas da escravidão prende crianças brancas para trabalhar na produção de mercadorias). Sim, todo argumento é válido, seu visual encantador e a premissa decisória. Mas há dois filmes. Um até Harrison Ford (“por estar insignificante”). Estético e de evolução conceitual. No outro, um exercício comercial do gênero de ação que perde ritmo e tenta agradar gregos, troianos e até replicantes. Com seus diálogos didáticos e ultra explicativos, suas cenas de perseguições, tiros e no limite, e suas incursões sentimentais. Sim, há dois mundos que Denis Villeneuve conhece. O de “Incêndios” na primeira parte e o de “Sicário” na segunda parte. Há a “sincronia” do amor físico; a espiã que encontra facilmente seu alvo; o queijo sonhado; as estátuas de mulheres gigantes; obras de Pablo Picasso; a frase de que “mentir é feio”; tudo descamba ao óbvio. Mas talvez estas hesitações e falhas sejam o ponto de humanidade. O que nos torna humanos. “Esqueça os problemas, assista ao show, aposte um pouco”, diz-se sobre o mundo de antigamente.

Quando a revolução chega, e a mensagem defensiva e panfletária da mudança, K precise escolher um lado e lutar. Mesmo que “às vezes é preciso ser desconhecido”. Cada vez simplifica mais a vida, opta pela “árvore”, faz o certo, desestrutura o sistema e restaura a fé na humanidade. Sim, o filme desejou demais o conceito auto-ajuda de ser neste mundo distópico de individualidade coletiva. E assim, o mundo foi salvo mais uma vez por Ryan Gosling.

3 Nota do Crítico 5 1

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