Cartório das Almas
Autodescoberta em uma rotina tediosa-eterna
Por Pedro Sales
Durante o Festival de Brasília 2023
O anseio pela imortalidade é milenar, afinal, quem nunca pelo menos pensou em viver para sempre? Aliado a esse desejo existe a incerteza por trás da morte, mesmo com crenças e religiões, ninguém pode afirmar com certeza o que há depois disso. Essas questões existenciais permeiam “Cartório das Almas“, longa-metragem brasiliense que compõe a Mostra Nacional Competitiva do Festival de Brasília 2023. Dirigida por Leo Bello, de “O Espaço Infinito“, a obra é uma distopia introspectiva em que a morte é uma decisão a ser tomada, não destino. Trata-se de uma premissa que flerta com a ficção científica, em uma condução narrativa muitas vezes silenciosa de ritmo lento que tenta soar poética. Mas também dá espaço ao isolamento ocioso da protagonista em uma tentativa de autodescoberta em uma rotina tediosa-eterna.
Laura (Gabriela Correa) é uma jovem de 126 anos que consegue um novo emprego: trabalhar no Cartório das Almas. A função é extremamente burocrática, ela deve registrar qual é o motivo das pessoas quererem renunciar à imortalidade, ou melhor, morrer. É terminantemente proibido, no entanto, tentar dissuadir os clientes, no máximo pode-se recomendar que eles reavaliem a escolha em casa, com a família. Ao longo dessa experiência direta com a morte, Laura passa a questionar a própria origem e a existência, uma vez que não se lembra bem do passado desde que foi condenada à eternidade e não tem direito a escolher a morte como os demais. O clima distópico e desolador do futuro analógico é bem construído pelo cineasta, não há novas tecnologias, com exceção dos banhos milagrosos que os mantêm imortais e o aparelho transformador de vida-morte. Aqui tudo tem um caráter envelhecido, no cartório, por exemplo, a única companhia de Laura são os carimbos, máquinas de escrever e fax. A solidão é interrompida esporadicamente por clientes de “senha zero” que deixam a vida transmutados em pássaros pretos.
O simbolismo imagético evocado por Bello em “Cartório das Almas” é pilar fundamental da obra, apesar de se tornar repetitivo. A fotografia de Pedro Maffei, nesse sentido, aposta em planos expressivos, em que a forma tenta sobrepor-se ao conteúdo, ou fazê-lo valer. Como os planos-detalhes da natureza, formigas, pássaros e árvores para contrapor à aridez do ambiente. O pássaro, inclusive, é assimilado na obra como um totem da liberdade, é mistério, além-vida. A mitologia da obra, portanto, é bem consolidada, desde os símbolos até a exploração cênica dos espaços. Além da transmutação na morte, existe o uso da arquitetura modernista de Brasília para construir o aspecto futurista, algo totalmente condizente com a proposta narrativa. O Museu da República, por exemplo, vira o espaço dos mergulhos em banheira, nos banhos de imortalidade. Outro aspecto importante da encenação é transmitir visualmente o isolamento de Laura em uma função entendiante, para isso a fotografia opta por planos gerais que reforçam a pequenez solitária da mulher naquele descampado.
A ficção científica comporta-se, então, como meio para o estudo de personagem, essência do longa. Gabriela Correa consegue, mesmo em uma atuação contida e calcada mais em gestos que diálogos, transmitir as dúvidas e incertezas da personagem solitária em uma rotina puramente tediosa e eterna. A direção de Leo Bello, contudo, confunde a representação do tédio com o conceito em si. O ritmo não é lento por si só, o que não é demérito nenhum sobretudo para uma obra com essa intencionalidade, mas se torna arrastado, até mesmo esvaziado dramaticamente. Toda a jornada de autodescoberta e emancipação da imortalidade da personagem e a busca pelo passado por meio de fotos, algo à la “Blade Runner 2049“, é extremamente internalizada e introspectiva. Afinal, a personagem não tem com quem conversar, apenas os clientes que aparecem e explicitam os motivos por optarem pela morte: a solidão em casa, a mulher que morreu, a irmã que não teve poder de escolha. Apesar de ser uma decisão criativa condizente com a experiência solitária da protagonista, o ritmo dilatado jamais progride nas ações, torna-se repetitivo na rotina e faz uma obra curta, de 1h17, se tornar longa. Os diálogos com os clientes também parecem não levar a lugar algum até a catarse, que mesmo provocativa, é bastante tardia.
“Cartório das Almas” é uma proposta existencial em uma diegese distópica. Assim como no longa anterior, Leo Bello consegue explorar uma imagética potente e associar um macrocosmo ao micro, da mitologia de ficção científica ao estudo de personagem. Neste sentido, inclusive, além dos planos-detalhes usados ao longo da obra, existem acenos ao body horror, ou horror corporal, nas cenas em que penas saem do braço. Talvez aí, na expressividade visual, resida a potência do filme. O foco principal, porém, está na introspecção de Laura e seu desejo de romper com a imortalidade tediosa a qual ela foi condenada. Todavia, isso é conduzido em um ritmo slow burn extremamente cansativo com ausência de ações, dando a sensação de que nada vai acontecer. É só no final que a direção finalmente dá sentido, ressignifica as ações anteriores e entrega de maneira bastante direta e ao mesmo tempo reflexiva a autodescoberta tão ansiada por Laura.