Carnaval
Engajamento e algoritmo
Por Vitor Velloso
Netflix
Poucas coisas podem ser mais ofensivas que “Carnaval” de Leandro Neri. Não apenas por explorar todos os estereótipos de maneira virulenta para conseguir algum capital de retorno. Nem por tratar Salvador como palco paisagístico para o delírio “sulista” que apenas usa a população a seu favor. Talvez por articular uma imagem de Brasil onde todos os sarados possuem o status que transita entre o desejo e o retardo mental generalizado. Ou mesmo por utilizar uma imagem absolutamente preconceituosa de uma personagem, a “mainha”.
Mas o projeto que a Netflix decidiu adicionar ao catálogo, consegue superar os minutos anteriores de ofensas, tentando fazer graça, e sempre retornando ao consenso industrial. Sendo o consenso a base do totalitarismo, filho da coerção, fica claro que “Carnaval” não poderia se distanciar da alienação tacanha na representação da cultura nacional. Além de falhar vergonhosamente nisso, não consegue partir de uma estrutura que faça sentido para suas próprias personagens. Toda a alienação é violenta aqui. A blogueira que “precisa” de 1 milhão de seguidores, o mundo que gira em torno disso, a “nerd” que pergunta sobre quadribol, a pessoa que só quer beijar todo mundo e por aí vai. Tudo é de uma rotulação tacanha, que funciona na própria sketch como uma “paródia” do próprio clichê. E caso o leitor mal intencionado possa creditar minha própria “categorização” ao mesmo nível, apenas se atente aos “pares” que são criados na própria obra.
Tudo que está ruim, pode piorar. Os corpos, sexualizados à esmo, objetificados, materializam uma espécie de desejo dessa burguesia que vai atrás da “loucura” que é o carnaval. Até que a protagonista vai atrás de seu abadá, encontra “mainha” (apelido genérico) que é totalmente estereotipada, e alicia a mesma para que aceite o pagamento (350 reais) em forma de “publi” no Instagram. Essa forma de exploração do trabalho, uma relação fomentada por “carteirada”, vem se tornando cada vez mais frequente no mercado virtual de likes e engajamentos. Algo que “Carnaval” normaliza, acredita fazer comédia com isso, encontra espaço para que a exploração seja vista como algo “natural”. O longa endossa gravemente essa mentalidade liberal e se preocupa em dinamizar o abismo entre as classes, a fim de glamourizar a vida de rede social, ainda que trabalhe com a “moral”: a vida é mais importante, curta com seus amigos. É uma espécie de institucional de seguro de dados, que divulga massivamente a mesma mensagem pelos aplicativos.
E se as ofensas não cessam, todos os pontos turísticos (que a burguesia procura) de Salvador são utilizados para compor quadros de beijos elegantes, sulistas na capoeira etc. Como a objetiva de um jornal de divulgação, a câmera aponta apenas para aquilo que interessa. É um dossiê de “como transformar Salvador em Caribe”, a gourmetização da cultura nacional, o apoio aos resorts. Tudo está fora do lugar em “Carnaval” e Salvador não importa, sim a ideia que se tem sobre. O povo não importa, portanto que estejam bajulando a burguesia de pixels. E nessa relação tão direta com o universo digital, Neri mostra que é incapaz de criar uma obra que, pelo menos, demonstre alguma habilidade na relação mais imediata com os meios da produção de conteúdo de seus protagonistas. Tudo é inócuo, esvaziado, virulento, tacanho e bestializante. O joguinho de plano e contraplano tenta emular os tempos cômicos de um “Vai que Cola”, imitando até certas piadas (a exemplo do “me segura”, com a fisicalidade idêntica).
Essa linguagem que apenas compromete o funcionamento da dinâmica das quatro amigas, pouco se importa com os eixos dramáticos que apresenta em momentos isolados e abandona tudo para criar uma imagem estetizante de um lugar que não existe, de pessoas falsas e energia irreal. Tal como um subproduto de uma agência de viagens, “Carnaval” parece ser exibido para cada gringo que decide se aventurar nas “belezas do Brasil”. E está claro que o brasileiro está no “pacote”, mas não o povo, apenas a modelação industrial dos objetos de desejo dos estrangeiros.
Além do terrível projeto de comédia, a Netflix corroborou com a exibição de algo tão artificial e nocivo que superou até a concorrente “Bezos Prime” que fantasiou o tráfico. Estamos ferrados e não-pagos.