Medusa
Mate-me por favor!
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2021
A jovem cineasta brasileira Anita Rocha da Silveira mantém, em seu mais recente filme “Medusa”, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2021, sua predileção pelo cinema de gênero, cuja abordagem evoca o horror psicológico, influenciado pelo medo do imaginário popular. A problematização social transmuta-se em fábula, para assim concretizar o que só enxergamos atrás de nossos olhos. Após o excelente “Mate-me Por Favor!”, Anita quer agora provocar a massificação de massa do radicalismo religioso. Pela narrativa arthouse, de estética pop-vanguardista-neon (propósito este de se criar o tom fútil, artificial, anti-naturalista e desconexo com a realidade – remetendo, por exemplo a aura etérea de “Suspiria”, de Dario Argento), que cria uma atemporalidade futurista no presente, o longa-metragem potencializa o latente e crescente “conservadorismo de Jesus” entre os jovens “justiceiros de e por Cristo”, os mesmos considerados o futuro do mundo.
Mas “Medusa” cai na própria armadilha deste cinema de gênero, visto que não é fácil, nem um pouco, conjugar silêncios e diálogos. Há duas opções: seguir por uma narrativa sugestiva (aberta) ou pelo clássico didatismo de explicar tudo que se quer apresentar. E ao optou pela segunda, Anita precisa lidar com as consequências: os clichês característicos, óbvios gatilhos comuns, falta de apuro técnico nas reações de seus atores (com exceção do ator Felipe Frazão – um respiro naturalista por uma irretocável interpretação como enfermeiro) e forçados diálogos involuntários à moda de uma telenovela, como o âncora do jornal que noticia a “noite de terror no sudeste brasileiro”. A solução imediata do roteiro da própria diretora para embasar suas fragilidades é a de se defender pelo blasé, descortinando máscaras, projeções e imaturidades reinantes, unicamente por ainda não se ter adquirido a perspicácia em lidar com o mundo. Ao invés de debater (e ouvir), grita-se o discurso unilateral, que se utiliza dos mesmos arquétipos formais e padronizados de até onde se pode ir no grau da luta.
Recorrentemente, as críticas deste site convidam à luz da discussão as palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, que, em “O Sentido do Filme”, define por “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção. Em “Medusa”, o caminho é inverso, especialmente por suas incompatibilidades. Há aqui uma necessidade de mastigar demais a ficção. Inevitável e imediatamente, o espectador é levado a referências similares de sua temática, como o filme “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro; na série do Canal Brasil “Gilda”, de Gustavo Pizzi; e mais sugestivamente às obras cinematográficas de Stephen Cone, em exibição no Mubi com “The Wise Kids”, “Henry Gamble’s Birthday Party”, cujo meio-comunidade aprofunda condicionamentos religiosos que precisam ser revisitados por conta das atuais circunstâncias do mundo em que vivemos. Se nos longas-metragens do realizador autodidata que vive em Chicago, por exemplo, o coral gospel apenas complementa, em “Medusa”, as performances musicais são tratadas como uma arma protagonista. Esse excesso se intensifica pela ingênua utopia de acreditar que só o filme resolverá (alertando) os problemas de nosso país (“Igreja tomando decisões do Brasil e da Nação”). Sim, uma crítica direta e apontada à bancada evangélica do governo de Jair Bolsonaro. E aos hipócritas oportunistas. Os “novos cristãos” empenham-se em salvar a família contra os “desviados”, contra o carnaval e contra até algumas maquilagens (a “selfie cristã perfeita”), à favor da moral, dos bons costumes e do lema “Ordem, Deus e Progresso”.
“Medusa” ainda cava outras metáforas, como o dormir e o acordar. O coma e a ação. O voltar à vida após estar morto. Lázaros podem afetar o calcanhar de Aquiles. Nesta fase psicológica do filme, podemos lembrar de “Cemitério do Esplendor”, de Apichatpong Weerasethakul. “Quase ninguém acorda ou realmente morre. Mórbido e estranho no começo”, diz-se. E então, outros gatilhos reaparecem, como funcionários dançando para remeter a um sonho com moldes delirantes de sonambulismo. Nossa protagonista, com um “tom de pele mais escurinho” (como é chamada pelos brancos cristãos), é “tocada”, recebe as “chagas de Cristo”, entra em confronto com as crenças, vive o prazer e se torna Plena. Livre das “Patricinhas de Cristo”. Nada é esquecido. Nenhum ativismo social. Até beijo lésbico ao som de Marina Lima. Talvez o que mais incomoda em “Medusa” é que o filme quer ser demais. Não há tempo para processar. Tudo é editado de forma acelerada para caber na duração. O título traz o significado do ser mitológico, mulher com serpentes no lugar dos cabelos, presas de bronze e asas de ouro. Odiava os homens por ter sido seduzida, e também odiava as mulheres, pois não se conformava em ser uma criatura monstruosa. Talvez isto consiga representar esta nova geração. Jovens presos em dois extremos do oito e oitenta.