Luta Por Justiça
Condenados ao nascer
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2019
Por mais que se tente, não é fácil traduzir o mundo em que vivemos, principalmente por causa de sua hostilidade inexplicável em relação ao “próximo”, que se manifesta de idiossincrasias subjetivas, alfinetando com julgamentos “donos da verdade” uma identidade sexual e/ou a cor da pele. Sim, é tão despropositado e fútil, que a melhor forma de se iniciar essas linhas críticas seja mesmo com uma citação de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”.
Quem sabe, a resposta para explicar todos os males da Humanidade esteja no fato de que socialmente nós não evoluímos e que ficamos repetindo padrões primitivos mascarados de reações educadas. Talvez isso possa semear um entendimento mais lúcido sobre a paranoia reinante, e “cheio de dedos” da cultura norte-americana, espelhada no filme “Luta Por Justiça”.
Exibido no Festival do Rio 2019, e com indicação de Melhor Ator Coadjuvante para Jamie Foxx no SAG 2020, o longa-metragem, um estudo ficcional de caso, é sobre misericórdia e Justiça, esta que se cega ainda mais quando preconceitos vêm à tona, criando assim uma cúmplice radiografia-necropsia dos meandros limitados da alma humana e impedindo que pessoas possam “andar livre sem patrão”. E que utopicamente se acredita na “Justiça igualitária”.
Baseado em uma história real que aconteceu em 1987 no Alabama, “Luta Por Justiça” aborda o descaso com a existência dos negros, estes que sempre são concluídos como ameaças e marginais em potencial. É um racismo explícito, e não mais velado. E quando um crime brutal de impacto chocante acontece, os mais vulneráveis precisam reviver a dor da tendenciosa e parcial desigualdade, distante e não inclusiva, perpassando por todos da família. Os “errantes”, já nascidos em rótulos segmentados, são chamados pelos “sulistas racistas” de “escrotos” pela “filosofia de que cães danados têm que morrer”. Retoricamente, quem assiste pensa o porquê de tanto ódio. O documentário “Sem Descanso”, de Bernard Attal, consegue explicar historicamente suas causas.
A narrativa do filme nos conduz pela emoção, aumentando um ponto do tom com seus discursos de efeito. Ora embalada pela música Mas ao contrário de outros exemplares do gênero, “Luta Por Justiça” consegue criar uma orgânica sinestesia com o público. Nós somos imersos nos sonhos interrompidos do Corredor da Morte e nas truculências dos guardas, que se tornam “justiceiros”. É inevitável ao espectador não referenciar a “Os Últimos Passos de um Homem”, de Tim Robbins; e/ou “Um Sonho de Liberdade”, de Frank Darabont; e/ou ao seriado recente “Olhos Que Condenam” (Netflix), criada por Ava DuVernay.
O longa-metragem, dirigido por Destin Daniel Cretton (de “I Am Not a Hipster”) é acima de tudo sobre a busca da humanidade, ofertada por um sensível e “jovem demais” advogado de Harvard e negro Bryan Stevenson, o ator Michael B. Jordan, de “Pantera Negra”, “Creed”, “Creed II“, que sente agora os efeitos de sua cor em uma terra sem lei (como ser humilhado na revista em uma penitenciária de segurança máxima e/ou as recorrentes intimidações, ameaças e perjúrios), mas que leva para a vida o ensinamento de sua mãe de sempre lutar. Nós sentimos a raiva e a impotência em seus olhos, que precisa ser contida a fim de não fomentar mais atritos já esquentados. Uma enraizada opressão branca.
“Qualquer negro que sai da linha, eles cospem. Você é culpado no momento em que você nasce”, diz o preso negro com a defensiva perspicácia e picardias da auto-proteção, como aceitar o conforto oferecido. A cada cena, com seus super-close, adentramos em todo um passado background transmitidos (destes que vivem nas sombras, excluídos como “bons monstros”), irretocáveis e dotados de uma profunda carga dramática, embalado desta vez pelo raiz e gospel jazz-blues negro, típico alabamiense.
“Luta Por Justiça” é principalmente uma crítica ao sistema penal, indicados pela facilidade que o advogado consegue novas pistas que inocentarão o réu “pego para Cristo”. Sim, “O Sol é Para Todos”, de Robert Mulligan, citado aqui por semelhar a historia sobre uma cidade preconceituosa nos anos trinta contra um lavrador negro acusado de estupro. É um filme de construção de instante à instante. O protagonista investiga e precisa “entrar na alma da cidade”, quase uma viagem ao tempo, que nós também compactuamos. Há um que de “Corra”, de Jordan Peele; de “Três Anúncios Para Um Crime”, de Martin McDonagh; de “Detroit em Rebelião”, de Kathryn Bigelow; e de “Harriet”, de Kasi Lemmons.
Como já foi dito, nós sentimos os medos, raivas e vontades de vinganças. É um mundo cão. E seu único “pecado”: “ser negro”. Contudo, o caminho que o filme estimula é da reação espirituosa (a verdadeira coragem), de aceitar a condição. Ainda que o roteiro pincele sutis curiosidades históricas, como a referência ao refrigerante de laranja, o preferido de Adolf Hitler. É também um filme sobre julgamento. Com defesas de seus promotores e advogados. E com o sadismo de assistir uma execução de morte – por cadeira elétrica (“não pense demais, senão pira”). Sim, de novo, há algo muito errado com a essência humana.
“Luta Por Justiça” diferencia-se pela dosagem sentimental. É direto e realista, sem suavizações (principalmente quando mostra um “cachorro racista”), ainda que o final busque a redenção do próprio povo americano. Necessário e compreensível como um morde e assopra para levar quem assiste até o limite aceitável do choque. Não há pretensão alguma de ser Michael Haneke, por isso, por essa verdade, o filme seja honesto demais com todos os envolvidos.