Festival Curta Campos do Jordao

Lei da Selva — A História do Jogo do Bicho

Acertei no milhar

Por João Lanari Bo

Lei da Selva — A História do Jogo do Bicho

 – Etelvina!

– O que é, Moringueira?

– Acertei no milhar

Ganhei 500 contos

Não vou mais trabalhar

Você dê toda a roupa velha aos pobres

E a mobília podemos quebrar

Isto é pra já, vamos quebrar (Moreira da Silva)

Entender o jogo do bicho é necessário para qualquer um que queira entender como chegamos até aqui neste emaranhado de violência com o qual convivemos no Rio. O bicho, que já foi inocente, há tempos está ligado a assassinatos, extorsão, lavagem de dinheiro e diretamente ligado ao crescimento da milícia. Pode-se dizer, inclusive, que bicho e milícia são, certamente, sócios (Pedro Asbeg)

Lei da Selva — A História do Jogo do Bicho” chega em boa hora: aliás, qualquer hora é boa para conferir o resultado do bicho, se é que esse resultado chega incólume, inteiro. Jogar no bicho se confunde com a vivência carioca das ruas e esquinas, lembram vários dos ilustres entrevistados da série dirigida por Pedro Asbeg. Uma vivência, como sugere um deles, Luiz Antônio Simas, que substitui ou encarna o próprio exercício da cidadania da população dessa cidade emocional, como dizia o governador Leonel Brizola. Pois então a hora é boa, pois a sensação é que a cidadania está esgarçada no limite, ou no limite da representação: quem captou esse esgarçamento, já em 1970, foi a Sônia Silk de “Copacabana, Mon Amour”: Lilian Lemmertz e Helena Ignez saem de um bar e caminham no meio-fio de uma avenida. “Tenho pavor à velhice!”, berraram em alto e bom som, esbarrando na câmera e transeuntes; “Olha o fantasma, o fantasma! É o pesadelo ao vivo!” – qualquer semelhança com o que se passa na nossa combalida atualidade, do poder crescente dos milicianos à impunidade do assassinato de Marielle, é mera coincidência…essa, afinal, uma das funções do cinema: atualizar o simbólico, fazer um boot das premissas que nos cercam e nos condicionam. Revisitar o jogo do bicho desde seus fundamentos – Barão de Drummond, a loteria para salvar o Jardim Zoológico de Vila Isabel – até as ramificações perversas da cena contemporânea, passando pela apoteótica conjunção bicho-carnaval dos anos de 1980, não era tarefa trivial. Ao fim dos quatro episódios, resta um momento, não apenas simbólico, mas também político, de superação do torpor histórico imantado nessa cidade partida, para usar a expressão de Zuenir Ventura.

Vivemos numa época em que a dúvida é um acontecimento, e a esperança, uma calamidade, dizia o pessimista (incorrigível) Cioran. “Lei da Selva — A História do Jogo do Bicho” quer escapar desse círculo vicioso, e capricha na produção: farta iconografia histórica e depoimentos de jornalistas, historiadores, policiais, sociólogos, carnavalescos, umas 40 pessoas. Depoimentos curtos, certeiros, evitando o talking head dos documentários convencionais, compõem uma espécie de enciclopédia popular sobre o Rio de Janeiro: além de Simas, estão Tainá de Paula, Marcelo Freixo, Milton Cunha, Bruno Paes Manso, Octavio Guedes, Chico Otávio, Juliana Dal Piva e Antônio Carlos Biscaia. E inúmeros outros, claro: o espectador salta de um verbete a outro com a agilidade mental de um trapezista, conduzido pela hábil edição. O material de arquivo, sobretudo a partir de fins dos anos de 1970, parece inesgotável: são imagens e sons produzidos para consumo diário de audiência da época, que guardam um sentido de, digamos, vertigem quando vistos hoje. Darcy Ribeiro, vice-governador, confraternizando com a cúpula do bicho e arriscando umas sacadas antropológicas; na sequência, o governador Moreira Franco, logo depois de vencer Darcy nas eleições, recebendo a cúpula no Palácio da Guanabara, abraçando os bicheiros como se estivesse abraçando políticos em um restaurante de Brasília. Personagens sinistros, como Mariel Mariscot, fazem aparições relâmpago, coligando a contravenção com o esquadrão da morte; outra figura inacreditável, com ar de galã canastrão (como Mariel), personificando a conexão com os militares, é o Capitão Guimarães. Situações bizarras, como o samba-enredo pró-ditadura da Beija-Flor em 1975, com o título “Grande Decênio”, intrigam o espectador. Lá pelas tantas, a letra dizia:

Nas asas do progresso constante

Onde tanta riqueza se encerra

Lembrando PIS e PASEP

E também o FUNRURAL

Que ampara o homem do campo

Com segurança total

Sim, isso mesmo (depois Joãozinho Trinta virou o jogo, com liberdade criativa garantida…pelas boas relações de Anísio Abraão com o regime). E o protagonista, o infalível Castor de Andrade, sambando na avenida e mandando ver no Bangu, termina se irritando com o cerco de Antônio Carlos Biscaia e Denise Frossard. A morte de Castor, em 1997, detona uma luta de poder digna de um action movie com canastrões enlouquecidos, e se arrasta até hoje – seu sobrinho, acusado de diversos crimes e foragido da justiça, teria implicações, de acordo com notícia veiculada nos últimos dias, com o assassinato de Marielle. Para arrematar, “Lei da Selva — A História do Jogo do Bicho” serve-se de uma voz esperta para legitimar sua narração: ninguém outro que Marcelo Adnet, ironia em estado puro das sonoridades silábicas cariocas. A série, em suma, acertou no milhar.

5 Nota do Crítico 5 1

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