DogMan
O caminho do calvário
Por Vitor Velloso
Festival de Veneza 2023
Luc Besson é um cineasta excêntrico, com uma carreira excêntrica. Com uma série de obras controversas, no sentido de sua aceitação ser pouco homogênea, e uma variedade tão grande entre os filmes, desde “O Último Combate” (1983), passando por “Subway” (1985), “Leon” (1994), “O Quinto Elemento” (1995), “Angel-A” (2005), “Arthur e os Minimoys” (2006), “Lucy” (2014) e agora “DogMan” fica claro que a cinematografia do cineasta é no mínimo variada. Os diferentes estilos e as múltiplas abordagens de cada filme, demonstra uma complexa gama de estéticas que Besson pode assumir para estruturar uma narrativa. Contudo, sua carreira possui altos e baixos tão agudos, com possibilidades de interpretação tão incisivas que arremessa o diretor em um Fla x Flu de opiniões absurdas, com leituras diversas e analogias extensas.
Se afastando desse universo, pouco proveitoso e particularmente tolo para uma crítica, é possível assumir que “DogMan” reúne algumas de suas características, mas se distancia desse problemático nicho citado anteriormente. Isso porque a estrutura do filme é bem menos ativa que em diversas obras do francês e algumas de suas particularidades são ofuscadas por uma obsessão em narrar a história do protagonista a partir de flashbacks, narrações e um diálogo que acontece em um ambiente fechado, que perdura praticamente o filme inteiro. Uma das grandes questões do filme em si, é que a construção inicial de Douglas, interpretado por Caleb Landry Jones, é fascinante. Não apenas por sua colocação em diálogos e trocas de informações, mas seu fascínio pelos cachorros e desprezo pelo ser humano, entregam ao espectador um personagem que parece superficial, problemático e entre uma insanidade e calmaria, que gera grande interesse nos primeiros minutos. Contudo, não só de uma construção dramática vive o projeto e quanto mais adentramos em sua história, mais programática ela vai se tornando, isso porque uma parte de seus traumas segue uma cartilha clássica do cinema industrial, mesmo que com algum fundamento.
Se as primeiras cenas do submundo de “DogMan” fazem o espectador acreditar que trata-se de um filme sobre crimes e delitos, o desapontamento pode ser grande quando na verdade é sobre uma figura atormentada por acontecimentos do passado, que por não encontrar formas de superação, despeja o amargor da vida em uma contradição peculiar: um cristianismo fervoroso, quase que autoflagelante, com um profundo ódio pela injustiça. E neste sentido, Douglas é um personagem bastante dúbio, pois da mesma forma que sua dimensão política é quase boba, sua dimensão dramática vai se consolidando como a principal questão do filme. Não por acaso, os blocos menos sólidos dessa construção narrativa, são os crimes em si e as partes mais conscientes são as cenas mais íntimas. Desta forma, conforme vemos sua performance de Piaf e interações cotidianas, vamos nos afeiçoando com essa figura que possui traços tão violentos e repletos de ternura, que toda sua caracterização estética remete à uma grande colcha de retalhos de um passado não superado, onde cada dimensão de seu ser parece ter um espelhamento óbvio.
“DogMan” é uma espécie de “Candyman”, com a diferença que o trauma social não é a fundação do mito em si, mas os problemas particulares explicam suas atitudes. Mas apesar de tantos elementos interessantes aqui, Luc Besson tem uma enorme dificuldade de conduzir o projeto para além da obviedade que foi apresentada no primeiro ato da projeção, que diz respeito a um crime cometido. E esse traço, não tão incomum em sua carreira, compromete esse enorme bloco de desenvolvimento dramático que tem momentos tão instigantes. O diretor parece preocupado em cumprir a risca uma lista de questões que o cinema Hollywoodiano acredita que são “gatilhos” mais recorrentes para um personagem atormentado e cai em uma série de marasmos, com conflitos bobos, interações comprometedoras e blocos inteiros que não agregam ao personagem, apenas procura caracterizá-lo dentro de uma caixinha. É como se a suposta fragmentação de Douglas, da violência e ternura, fosse um fetiche de Besson para acreditar na complexidade quase minimalista de um passado quase saturado no cinema. Ainda assim, vale mencionar que a atuação de Caleb Landry Jones é o ponto mais alto da obra e que o ator já merecia um destaque há algum tempo.