Deus e o Diabo na Terra do Sol
Deus é mulher e Rosa é a brasilidade
Por Giulia Dela Pace
Festival de Cannes 1964
“O transe, o fazer entrar em transe, é uma transição, passagem ou devir: é ele que torna possível o ato de fala, através da ideologia do colonizador, dos mitos do colonizado, dos discursos do intelectual. O autor faz entrarem em transe as partes, para contribuir à invenção de seu povo, que é o único capacitado a constituir o conjunto”
(Deleuze, 1990: 264)
Uma crítica de um filme como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha só tem uma coisa como definitiva: não se escreve fácil. Especialmente após quase 60 anos de sua estreia. E mesmo considerando que toda obra tem valor por si própria, Glauber não deixou absolutamente nada passível de revisão. Na verdade, muito pelo contrário, pois este filme é o equivalente a “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, ou mesmo de “Coronelismo Enxada e Voto”, escrito por Victor Leal Nunes, e ainda as brilhantes obras de Rachel de Queiroz, para o cinema. Porque temos, não somente, uma análise sobre o sertão nordestino – este “western” da caatinga e dos santos missionários – mas sobre raça, papéis sociais de gênero, formação do povo brasileiro, coronelismo, os prós e contras do cangaço, e principalmente uma crítica política ao comportamento burguês visto até mesmo dentro da realidade de um jagunço sertanejo. Isto é o que vulgar e simploriamente se chama de “atemporal”.
É necessário, mas não precisamos gritar, Paulo. Aliás, Paulo – protagonista de outro filme de Glauber, “Terra em Transe”, e interpretado por Jardel Filho – é um perfeito exemplo de um personagem masculino típico de Glauber: histérico, impulsivo, raivoso e perdido na sua própria utopia solitária. Espelhado em Manuel, papel de Geraldo Del Rey em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Enquanto as personagens femininas do cineasta baiano, como: Rosa (Yoná Magalhães), esposa de Manuel, e Sara (Glauce Rocha), companheira de Paulo, de “Terra em Transe”, não deixam faltar racionalidade; noções éticas; autocontrole; autoconsciência e uma inteligência que realmente só poderia vir de uma mulher – também se enquadra uma inteligência quase maternal de ambas, mas definitivamente não é desta que se fala. Com elas não é preciso gritar, pois ficam em silêncio na maior parte do tempo, e parece que muito propositalmente.
E não um silêncio opressivo, mas reflexivo – com certa carga de opressão e vulnerabilidade de gênero, é claro – e conscientes de tudo que ocorre. Glauber também as constrói consciente e busca se distanciar de um olhar patriarcal, pois apesar de não se distanciar do olhar dominador masculino ele ainda tem certo controle de um “olhar opositivo” ao atribuir os papéis de gênero no longa. No caso de Rosa, há um silêncio de quem se comunica com algo maior, muito além da mesquinha violência que objetivam os homens da narrativa. Um silêncio doloroso de quem sabe muito e enxerga além da visão limitada de Manuel, pois é ela quem sempre mostra a razão, as possibilidades, os fatos e a compaixão. Enquanto o marido se perde na ilusória esperança de um falso messias e por fim se corrói na violência escancarada do cangaço como última alternativa de conquistar algo. E é este silêncio e transe que dá vida e compasso ao filme.
Além disso, Rosa é o Messias verdadeiro. Vemos isto com sua presença perto de animais ou quando os fiéis cantam a “Ave Maria” e o jogo de câmeras faz compreender que é ela a Maria, a verdadeira santa do sertão. Sempre olhando para todos com justiça e compaixão, mas ao mesmo tempo repugna atitudes de figuras religiosas que deturpam a fé e enganam o povo alienado por objetivos ordinários. Ela muda quem está ao redor e muda, também, ela mesma com o passar do tempo. Se antes estava em um estado catártico de trabalhar roboticamente para subsistência, com a fuga – após a Manuel assassinar um vaqueiro rico – ela se vê obrigada a questionar e sentir muito mais do que antes. Já que, ao invés de almejar mudanças naquilo que parece óbvio, utópico e imediato – como todas as tentativas de “milagres vendáveis” aos pequenos burgueses pobres em que Manuel cai – ela busca simplesmente viver dignamente e faz aquilo que acha correto.
Glauber Rocha, mais uma vez traz uma personificação do turbilhão que é o povo em busca de uma revolução, mas dessa vez em Manuel, que se rebela contra anos de patrimonialismo e, especialmente, coronelismo. “A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza” (Rocha, 2004: 250). Mais uma vez a violência impulsiva, movida pelo ódio contra o poder legitimado pelo Estado, se mostra como uma alternativa de romper com as opressões. Assim, Manuel, um jagunço revoltado e de convicções tal qual um pequeno burguês, é construído para ser falho e vazio, como uma representação da esperança de uma revolução popular movida por ódio cego – um ódio que se repetiu na história como prenúncio de diversas catástrofes, como o fascismo na Alemanha de 1933 e no Brasil de 2018.
E Rosa, por mais que consciente durante toda a narrativa, é apenas na sororidade com Dadá (Sônia dos Humildes) que ela consegue realmente libertar a feminilidade erótica – no sentido estrito de Audre Lorde, do poder ligado a autoconsciência da feminilidade e das suas potencialidades – que esteve sempre contida. Esse despertar de consciência, além da feminilidade, caminha ao longo do filme, saindo desse estado catártico e inerte do começo robótico. E assim, a personagem consegue compreender seu papel e lugar na história, diferente de Manuel e Paulo, que por mais que tentem e busquem isso estarão para sempre perdidos em sua revolta privativa e utopia.
É com Dadá, também, que Rosa conquista, até mesmo, uma alegria momentânea, pois só outra “rosa do sertão” a compreenderia. Só uma outra flor nascida e crescida na adversidade árida do ambiente agressivo, tanto pelas masculinidades presentes quanto pelo clima da região. Mesmo porque Dadá demonstra enxergar a força de Rosa e sua ciência sobre o próprio contexto. Ambas servem a causa de reinventar a brasilidade, mas Dadá reconhece que Rosa está mais apta. Daí, a entrega do lenço de Maria Bonita, véu e uma flor de cacto – planta que cresce forte mesmo nos ambientes mais inóspitos – que simbolizam uma linda passagem de “bastão” à Rosa. E Glauber constrói, assim, a sua visão de mundo muito mais a partir das personagens femininas, como se seu impulso fosse gritar, bater e matar, mas sua consciência estivesse em transe no contato com sua feminilidade. Mas também desenhou bem a mulher brasileira, e até mesmo a latino-americana, em sua essência, pois conscientes de seu tempo e espaço, elas se adaptam. Conquanto, nunca deixam de agir e tomar iniciativa sobre situações que julgam absurdas. Rosa é todas nós.
Rosa não é, e nunca foi o plano de fundo do filme. Mas o ritmo e a sustentação de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, já que é pelas mulheres que Glauber fala de forma mais sensata, é nesse transe que se vê e se sente tudo que as coisas se tornam claras e objetivas, que se tornam sensíveis. E nesse filme do cineasta que o protagonismo da personagem feminina ocorreu da forma mais brasileira possível: um “matriarcalismo” subjugado e subexposto por uma sociedade onde homens fantasiam controle e poder.
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” seguirá como uma obra de factualidade imortal, tal como os livros citados acima, haja vista que todas são obras que delineiam a construção da brasilidade e das mazelas sociais do país. Embora, o filme sozinho foi bem capaz de construir personificações da psique da brasileira em seu eterno protagonismo invisível e do brasileiro com sua falha masculinidade agressiva, que não passa de demonstrações subalternas de poder de homens latinos de terceiro mundo.