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Leviatã

A crítica social por trás de Leviatã

Por Redação

Crítica convidada por Alessandra Scangarelli Brites

Leviatã

“Leviatã”. Em uma tarde de domingo, durante nossos “momentos” de reflexão e leitura, minha madrinha e eu comentávamos que os filmes, como os livros, para além do entretenimento servem como ferramenta de reflexão filosófica e sociológica. Ainda aqueles que parecem sem qualquer pretensão de análise, acabam por transmitir valores sociais já conhecidos, nem que sejam para cultivá-los, perpetuá-los. E, certamente, existem aquelas obras cinematográficas cujo objetivo seria o de promover uma discussão do cenário político, social, econômico. A escola soviética baseou-se, em grande parte, nesta premissa para além: o cinema como uma ferramenta transformadora da realidade humana. Como russos, também franceses da Nouvelle Vague, do neorrealismo italiano e alemão, as escolas muito estudadas nas disciplinas e faculdades de cinema no âmbito mundial, tinham como fator básico tal premissa. Com o fim da União Soviética e, consequentemente, da Guerra Fria, o que significa dizer o fim da dicotomia e competição civilizatória mundial, que ocorreu entre os diferentes sistemas capitalista e socialista, esta linha de pensamento cinematográfico passou a ter menor preponderância. E atualmente, em um período considerado de crise criativa do cinema, quando a premissa de busca pelo lucro impera, tanto os grandes estúdios quanto às médias e pequenas produtoras direcionam suas produções para entretenimento, ou histórias de cunho pessoal, transtornos psicológicos, que apenas refletem alguns aspectos da sociedade de nossos dias.

Extremamente individualistas, nas temáticas mais preponderantes está a busca pelo prazer descomunal. Isso nos leva, por decorrência destes e outros fatores, a conviver com diversas doenças de cunho psicológico, que parecem afetar a todos, em especial aos mais sensíveis. Particularmente, os que percebem o drama existencial que se vive. Sim também existencial, pois com o fim da União Soviética, ainda que com os erros do sistema, um ideal, ou a possibilidade de alternativa ao sistema vigente, o capitalismo, passou a ser mais remota. O capital, cujos seguidores promoveram e continuam a propagar a ideia de que não existe outra possibilidade ao sistema existente. Há, portanto, um vazio, que tenta ser preenchido por algumas formas ideológicas inclinadas para um radicalismo, a exemplo: o fundamentalismo religioso, os ecoradicais, que querem esterilizar populações inteiras dos países em desenvolvimento como se eles fossem a causa dos problemas, e o neonazismo. Contudo, por sorte talvez, nenhuma delas têm ainda credibilidade suficiente para tornarem-se hegemônicas. Porém, o sistema liberal, do ultra individualismo que preserva a essência animal do homem, em que o mais forte deve vencer o mais fraco, tão pouco nos parece uma alternativa, embora seja a que estamos consolidando, talvez sem saber. Estes cenários são típicos dos períodos de crise que são os melhores momentos para a criatividade humana, se tivermos a sensibilidade para tanto. “Leviatã” (2014), de Andrei Zviáguintsev, ganhador de melhor roteiro no Festival de Cannes, do Globo de Ouro 2015 e indicado ao Oscar 2015 de melhor filme em língua estrangeira parece correr estes caminhos e é sobre ele que vamos comentar um pouco mais a seguir.

Certamente, cada olhar sobre um trabalho terá suas particularidades. Em especial, é difícil que o filme possa ser completamente vinculado à obra de Thomas Robbes, o “Leviatã”, porque ao contrário do que foi divulgado pela mídia, Hobbes via o Estado como uma ferramenta necessária e positiva, que visa conter o caos. Em Leviatã, temos uma crítica a este aparato político burocrático, a partir de bases filosóficas bem profundas, que se não bem acompanhadas pelo espectador, passam despercebidas. Entretanto, o filme, justamente por se tratar de uma temática densa, na sua edição acaba por deixar um queria ver mais, ou poderia discorrer mais sobre tal assunto. No meu caso, ainda gostaria que diversas questões ali tratadas fossem mais aprofundadas como a própria relação Estado e Igreja; ou a posição da mulher, que atualmente é pouco retratada nos filmes russos, não tendo o papel central de protagonista que elas, na realidade, têm, e de forma bem acentuada na sociedade russa. Poderia dizer que, ao contrário do que se pensa, as russas fazem o que querem, sendo os valores que as conduzem um prato cheio à criatividade que se predispõe questionadora e analítica. Algo interessante a refletir, pois temos diversos momentos de puro conservadorismo sim, como vejo em algumas classes sociais do Brasil e em outros países. Isso, creio, é pouco representado, não apenas em Leviatã, que apresenta superficialmente os perfis femininos, sendo a personagem central vinculada ao homem e submetida a análise: afinal, Lylia, a esposa de Kolia, que o trai com seu melhor amigo Dmitri, deve ou não ser perdoada pelo que fez? Teria ela sido a principal causa, para que Kolia acabasse por perder a cabeça, fazendo com que toda a vizinhança o reconhecesse como o culpado por sua morte? Aqui temos um conflito interior bastante humano que corre paralelamente com a questão central do filme. Contudo, ele acaba tendo uma vinculação que iremos perceber mais adiante, quando nos fica evidente a temática central de

Podemos perdoar o diretor por esta temática feminina, já que a sua questão chave está na análise dos valores sociais, mencionados acima, e idealizados neste período do século XXI. Lembre que os valores moldam o jeito de viver de cada civilização e geração, promovendo formas de conduta que chegam ao poder, seja ele político, ou financeiro. Descartando esta possibilidade em Leviatã, novamente acabamos caindo em um lugar comum do tipo: “olha como a Rússia de Putin é horrível”. Como se todos aqueles problemas que são parte de uma história de séculos, fossem agora motivadas por um homem só. Está é uma visão muito simplória e simplista que não cabe para “Leviatã”, exibido no Festival de Toronto 2014.

Recapitulando, entre um dos resultados visíveis deste sistema de valores individualista está a volta, cada vez mais forte, do poder religioso, que se tornou uma variável importante e que já caracteriza a nossa época e, no caso específico da Rússia, nos trás perguntas do tipo: estaria isso relacionado ao fim da URSS e seu Estado laico? Ou toda a perda da representação simbólica que os soviéticos eram para diversos grupos políticos espalhados mundo afora agora os tornaram em almas perdidas, que almejam ser resgatadas por alguma fé ou causa de cunho radical, por exemplo? É importante frisar que não se está querendo ferir a fé de ninguém. É possível acreditar e respeitar a fé de cada um, o que considero algo diferenciado de doutrinas religiosas. Na minha concepção, estas são políticas, como qualquer instituição humana, quando falamos da política para além dos partidos políticos. Elas têm seus interesses, inclusive econômicos. A religião aqui tenta suprir o que o sistema dos valores individuais não fornece: a presença do outro. O que pode gerar uma massa de controlados por valores de instituições que ainda carregam doutrinas um tanto arcaicas e pouco compatíveis com o mundo atual.

Por fim, creio que “Leviatã” coloca uma questão não nova, mas que ainda vale refletir: o quão igual, ou justa pode ser esta sociedade democrática, baseada no respeito aos valores individuais. Para melhor explicar, lembre, que quando houve o fim da URSS, este sistema liberal do Ocidente entrou de forma avassaladora na Rússia, não tendo eles nem tempo hábil para adaptação. Afinal, um novo molde de princípios se instaurava: de que agora o respeito ao indivíduo é a maior nota a ser tocada por lá, falando em português simples. Esqueça a comunidade, esqueça o todo, ou todos, agora o “EU” impera. E uma boa parte do mundo aplaudiu em pé, nos anos 1990.

Só que o “EU” não é apenas legal e respeitoso, é também mesquinho, é egocêntrico, é individualista, é ganancioso, é violento. Não há o “OUTRO” nesta sociedade produtiva, em que se baseia ainda numa suposta interpretação de Darwin, de que o mais forte, vence o mais fraco. Algo que o grande pensador inglês jamais se propôs a fazer. Agora, estes valores não são impostos por um homem “muito mau”, ou um Estado “muito mau”, ou um país “muito ruim”, ele está em todos nós. Ele faz parte do sistema civilizacional, que alguns adoram dizer, que venceu a Guerra Fria: o liberal e da sociedade “livre”.
Ou seja, é cada um por si. Como menciona o filho de Kolia, que após a morte da madrasta e a prisão do pai, se encontra sozinho no mundo. Contudo, ele afirma não precisar de ninguém. É mais um sobrevivente, ou melhor uma vítima desse sistema de relações humanas cada vez mais caótico. Assim como é Lylia, obrigada a viver em mundo de aparências, pois tenta lidar com os diferentes interesses individuais do marido e do amante. Estamos falando de uma prisioneira, um indivíduo fraco, incapaz de exercer um poder de influencias, de competir e sobreviver. É esta a ideologia, os princípios que norteiam o sistema político, econômico e social, que tem a petulância de ainda se dizer não ideológico. E ele é coordenado por quem apresenta maior capacidade de compor os diferentes interesses para se manter no poder. E os que poderem nele sobreviver terão de ser, ou parecer, também articulados, no intuito de poderem caminhar “livres” do perigo nesta selva.

Ao regressarmos na história, é preciso lembrar que a URSS foi uma tentativa de se opor a este quadro. Se foi bem sucedida ou não, é pauta para outra discussão, mas houve uma tentativa de promover a ideia de que o Estado seria o meio organizador da sociedade, de forma a criar um outro contexto, uma sociedade com novos valores, que vivesse em comunidade. Com o fim desta perspectiva em 1990, no seu lugar temos o conjunto de influências políticas individuais, que passam a estabelecer as relações necessárias, no intuito de atingirem seus objetivos.

Isso fica muito claro nos personagens de “Leviatã”, sendo a Igreja talvez a mais poderosa das instituições, pois, para além do poder, ela transmite de forma muito eficaz e sutil os seus valores, e sabe manipular e alienar seus súditos, na medida necessária, para atingir seus objetivos particulares. E, assim, também acaba consolidando crenças e práticas de vida que não condizem mais com a sociedade do século XXI, a exemplo do próprio papel da mulher e do modelo de família que se propõe ser o “correto”. Lembre que, apesar das diversas instituições religiosas existirem na URSS, elas eram suplantadas pelo poder pesado do Estado e sua ideologia, que não permitia a penetração das doutrinas no aparato estatal. Tal característica de imposição é algo ainda mais antigo que a própria União Soviética. É proveniente de séculos de czarismo, o que nos faz retornar a formação do Estado russo, que foi construído com alguma semelhança aos de Portugal, da Espanha e tantos outros, que tiveram como base a conquista, a anexação do território e a imposição dos costumes e da fé aos povos conquistados. Esta característica foi uma das chaves que aqueles primeiros idealistas soviéticos tinham o objetivo de, aos poucos, eliminar da mentalidade russa. Foram até bem sucedidos, se considerarmos que eles levaram adiante estas transformações em um período histórico que conheceu duas Guerras Mundiais e a Guerra Fria.

O propósito era que a imposição fosse aos poucos substituída pela ideia de que as culturas, respeitando cada uma as suas características próprias, possam viver em uma unidade, já que o lema comum era buscar ascensão social e igualdades materiais e de poder. Certamente, que se trata de uma ideologia, ou Utopia como qualquer outra e que foi suplantada pelos valores desse atual sistema, que tem muito do modo ocidental de ser. Este faz com que a identidade regional dos povos aos poucos seja perdida e promove a brutalidade dos governos, que acabam por apresentar, na realidade, os mesmo problemas, em sua maioria.

Em outras palavras, um Estado que parece contradizer-se, pois ao mesmo que se sobrepõe ao indivíduo, ele almeja proteger os seus direitos. Ora, isto logo se torna claro quando se percebe que a formação de valores que se defende é novamente: o mais forte deve vencer o mais fraco. E, se não bastasse, é parte de uma competição que se diz honesta e que as armas para vencê-la são a notoriedade e o poder de influencia de corações e mentes.

Não é à toa que hoje o ser célebre, os casamentos relâmpagos, a vida líquida como diria Bauman, são características que infelizmente irão fazer parte também da descrição da nossa sociedade pelas gerações futuras. Afinal, alguém que sai de casa para falar da vida privada e que faz da sua vida pessoal um claro negócio, algo que se chama de marketing pessoal, é tão doente e individualista como o personagem prefeito de Leviatã, Vadim, que apenas busca a consolidação do próprio poder na região, custe o que custar. Como também é o da Igreja Ortodoxa que almeja ser a fé única, em uma sociedade tão plural culturalmente falando, como a russa. Todo este cenário de concorrência é um absurdo que leva a autodestruição e propaga um sentimento de fraqueza, impotência e submissão total. Diferentemente da esquerda que é muito crítica com ela mesma, a linha liberal preponderante tem, na maioria de seus seguidores, dificuldade em criticar os valores daquilo que defende. Afinal, o capital também matou muitos, milhares e continua a fazê-lo. Ainda pior, é capaz de, como fã da causa liberal, usar a mídia para preconizar de que não há alternativa e que este sistema, apesar de imperfeito, é o melhor e assim devemos aceitá-lo. E ninguém parece discordar! Como se todos estivessem exaustos de lutar por causas. Enfim, ainda me pergunto: e se esta pessoa conformada tivesse sua casa destruída, como o personagem Kolia, em “Leviatã”? Estamos em eterna disputa ideológica, que nunca acabará. Pois o homem é um ser pensante e que vive em sociedade. Portanto, as ideias se ajustam e se renovam nos diferentes períodos históricos, sendo de uma forma nos tempos de minha madrinha, que fez parte da geração da Segunda Guerra Mundial, e de outra nos tempos atuais.

Mas sua essência é a mesma, a diferença é que a geração dela poderia argumentar sobre a existência de alternativas civilizacionais possíveis e forma de pensar e agir distintas, já que ela viajou o mundo inteiro. Eu, comecei a viajar ainda mais jovem, porém, cada vez que viajo e vivo mais, percebo que tudo parece mais do mesmo. Afinal, as marcas são as mesmas em qualquer lugar do mundo, elas têm um poder, vinculado aos Estados, que só um Kolia da vida, com seu romantismo ideológico de mudança, mais parecido com épocas passadas, ousaria combater. De quando ainda existia o grito de guerra: “Trabalhadores, uni-vos!”, e não o “quem quer ser um milionário?”. Portanto, nossa fatídico personagem tem pernas e braços muito curtos, é impotente e, por isso, bebe para esquecer o fracasso. Kolia não é apenas russo, é universal.

4 Nota do Crítico 5 1

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