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A Natureza do Amor

Os opostos se atraem

Por Pedro Sales

Festival de Cannes 2023

A Natureza do Amor

Para os gregos, o amor poderia ser sintetizado aprioristicamente em três tipos: Eros, o amor romântico; Philia, o amor proveniente da amizade; e Ágape, o amor divino e incondicional de Deus para com os homens. Em uma relação de casal, quando a paixão e o eros se apagam, restam somente a philia e a amizade forjada pelo convívio diário com a pessoa outrora amada romanticamente. A produção canadense “A Natureza do Amor“, realizada pela atriz e diretora Monia Chokri, lança-se nessas várias facetas que o amor pode assumir, inclusive o movimento de eros para philia e a ascensão de uma paixão fulminante que se levanta contra todas as probabilidades. Selecionada na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2023, a comédia romântica habilmente constrói os altos e baixos do relacionamento romântico, entre o fervor erótico e a admiração amigável, aliada à expressividade e inventividade da mise-en-scène da cineasta.

Sophia (Magalie Lépine Blondeu) tem um relacionamento duradouro com Xavier (Francis-William Rhéaume). Juntos, os dois representam o melhor arquétipo do casal burguês-intelectual-de-esquerda. Os jantares, sempre em uma cadência verborrágica, são espaços de diálogos em que podem falar de tudo, desde autocratas do Turcomenistão até as novas tendências das artes plásticas contemporâneas. Apesar dessa proximidade intelectual entre o casal, dormem em quartos separados, como revela a câmera. Na composição que enquadra o casal pelas frestas das portas, é como se cada um estivesse em seu mundo próprio. Quando Sophia visita o chalé que comprou, porém, tudo muda. Ao conhecer Sylvain (Pierre-Yves Cardinal), a paixão latente no relacionamento com Xavier transforma-se em ardor para com o homem que está reformando a casa. Nessa aventura fora do relacionamento, Sophia lida frontalmente com dois aspectos: a renovação de um tipo de amor há muito arrefecido e um mundo completamente diferente do seu, mais simples em comparação às discussões quase acadêmicas.

Dessa forma, Monia Chokri desenvolve muito bem uma das principais convenções do gênero, o contraste de realidades. “A Natureza do Amor” não é a primeira nem será a última comédia romântica a colocar seus personagens em condições sociais distintas. Há, portanto, uma certa mítica e romantismo no aforismo de que “os opostos se atraem”, o que justifica talvez a continuidade dessa representação. A cena em que Sophia traduz “Still Loving You”, dos Scorpions, para o francês porque Sylvain não fala inglês é bem sintomática dessa tônica do filme. Entre a delicadeza intelectual e a rusticidade do homem do campo, a obra encontra um tom extremamente bem-humorado e envolvente. A paixão é tão orgânica e, acima de tudo, sincera que é até complicado o espectador ceder à moral extrafílmica para torcer pelo fim da infidelidade. Ou seja, quando o amor erótico floresce, a obra consegue trazer esse êxtase inconsequente e puramente apaixonado.

Esse sentimento só se desvanece quando o casual se torna sério e um entra na realidade do outro, no ciclo familiar e de amigos. Por mais que o desconforto seja o principal sentimento que se depreende dessas cenas, justamente em razão de Sophia e Sylvain não se sentirem pertencentes ao mundo da pessoa amada, ainda existe um tom cômico muito bem delimitado. Chokri nunca deixa a peteca do desconforto cair, mas ao invés de provocar ansiedade, ela tira risada pelo desenrolar absurdo das ações. Isso se dá também pela forma muito expressiva que a diretora escolhe filmar, com zooms abruptos, por exemplo, ela reforça o humor e a sensação de não pertencimento. Mesmo nas cenas mais dramáticas e românticas essa liberdade na fotografia se repete. Muitas vezes, por meio de panorâmicas, a cena é reenquadrada em espelhos, reflexos, portas e frestas dando uma visão multifacetada ou segmentadada personagens. Assim, as decisões formais não soam como mero capricho estético, e sim uma maneira de transmitir visualmente a confusão, a liberdade e as dúvidas que surgem em um novo amor.

A Natureza do Amor” é uma comédia romântica que, mesmo forjada na convenção dos opostos, consegue provocar uma leveza e encantamento bastante originais. Chokri se aproveita da fotografia inventiva, da montagem enxuta e da trilha envolvente para acompanhar o tom romântico criado. Com um texto afiado, cujo humor se mantém por toda rodagem, o longa explora a verborragia intelectual de Sophia – as justificativas para a traição ditas enquanto é beijada e as aulas de filosofia que parecem acompanhar em qual etapa do amor ela está – e a simplicidade terna de Sylvain – o elogio nada polido à namorada e a sinceridade poética bucólica. Do ErosPhilia, do sexo às brigas, do afastamento às recaídas, Magalie Lépine e Pierre-Yves esbanjam química e paixão em tela, mas sem nunca perder a dimensão dramática inerente às histórias de amor no século XXI, quando a liquidez parece inevitável. É um filme de amores improváveis, de realidades muito distintas que encontram convergência inicialmente pelo Eros e enfrentam justamente o que há de diferente como prova de sua vocação para perdurar.

4 Nota do Crítico 5 1

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