Uma Mulher Sem Filtro
A porta aberta?
Por Vitor Velloso
Festival Guarnicê de Cinema 2025
Existem produtos fabricados com uma intencionalidade clara, assim como o público-alvo que pretendem atrair para as salas de cinema. Esses produtos, ainda que programáticos, têm grande importância no circuito de exibição dos filmes brasileiros justamente por conseguirem mobilizar uma parcela significativa de pessoas que, em condições normais, dificilmente se interessariam pelo cinema nacional (ou ao menos é o que se acredita). Muitos acabam se deslocando até as salas apenas para dar algumas risadas com fórmulas já consagradas por sucessos anteriores ou pela dinâmica herdada de projetos televisivos.
“Uma Mulher Sem Filtro”, filme que abriu o 48ª edição do Festival Guarnicê de Cinema 2025, procura se inserir nessa volumosa fila de produções que buscam dialogar com um público específico, abordando questões sociais (não exatamente inéditas, mas que ganharam mais repercussão no contexto atual) e, ao mesmo tempo, tentando provocar algumas risadas. O problema é que o novo filme de Arthur Fontes se revela incapaz de cumprir esse objetivo: aposta em situações constrangedoras – como a cena em que Bia (Fabiula Nascimento) late para o cachorro que a incomoda diariamente – mas fracassa em gerar humor; tenta discutir questões sociais, mas recorre a personagens estereotipados; e, no fim, ainda se mostra conivente com uma resolução pragmática alinhada à ideologia dominante, a “porta à direita”.
Desde a introdução do embate geracional, mostrado de forma questionável no confronto entre Bia e Paloma (Camila Queiroz), o filme assume uma postura incômoda: utiliza clichês, repetições e estereótipos para desenvolver a trajetória da protagonista. Ainda que evidencie a adaptação do editorial da revista às lógicas das redes sociais ou que mostre a amiga imersa no universo digital, tudo é feito de maneira tão didática que o filme não encontra um caminho verdadeiro para discutir a “solução” dos problemas de Bia — ou, em sentido mais amplo, como lidar com o machismo. Assim, limita-se a expor situações, atualizando superficialmente algumas perspectivas (como a breve menção ao “esquerdo-macho”) e recorrendo a passagens cada vez mais absurdas para tentar arrancar risos, seja com a madame que sempre passa de carro no mesmo horário ou com a vizinha que dá festas caóticas regadas à presença da polícia. Quase tudo é artificializado como mero recurso cômico, raramente ganhando peso narrativo ou dramático. A própria estrutura segue um molde engessado, que emula comédias norte-americanas por meio de músicas constantes, repetição de cenários (como a vizinhança da protagonista) e ambientes tão pouco verossímeis à realidade brasileira que parecem importados de forma precária.
Não por acaso, o desfecho do longa também dialoga diretamente com esse modelo estrangeiro, muito associado à ideologia que se consolidou nos últimos anos no Brasil: a “felicidade” se resume a uma promoção profissional, a um carro de luxo importado e à ilusão de que esse clichê estadunidense — já em decadência, tanto na realidade concreta quanto na própria cinematografia norte-americana — ainda representa um ideal.
“Uma Mulher Sem Filtro” tenta atualizar debates sobre gênero, machismo e a mulher trabalhadora, temas que já apareceram em diferentes momentos do cinema nacional. No entanto, recorre a uma fórmula defasada há pelo menos uma década, propondo soluções fáceis, escapistas e importadas. Embora seja capaz de gerar alguma identificação por meio de estereótipos reconhecíveis, soa estranho ao olhar brasileiro: uma distorção cínica da realidade que apenas cumpre um protocolo superficial, tão pueril quanto o objeto e a ideologia que afirma criticar. É sintomático perceber como a crise que assola o cinema do Norte Global é importada sem nenhuma vergonha ou mínima reflexão crítica sobre a própria fórmula.
A pretensão de levar o público ao cinema para “debater” as temáticas do filme se revela ilusória, já que “Uma Mulher Sem Filtro” funciona mais como cartão-postal hollywoodiano: esquetes que não discutem nada, situações que se tornam cada vez mais constrangedoras e um desenvolvimento cíclico por pura falta de criatividade. Até mesmo as passagens que tentam promover identificação — como os personagens masculinos perguntando se Bia está de TPM — perdem força diante de um desenvolvimento atabalhoado. Fabiula Nascimento, talento reconhecido da televisão e do cinema brasileiro, também tem sua atuação comprometida por um roteiro e um projeto tão deslocados do nosso contexto.
É uma pena ver como um projeto com potencial comercial deste tamanho se curva para uma descaracterização tão aguda, flertando com um estranhamento que não se vê em projetos desta natureza, à muito tempo.