Tinnitus
Um grilo dentro da cabeça
Por Pedro Sales
Mostra de São Paulo 2022
Um zumbido incessante atormenta a atleta de saltos ornamentais Marina (Joana de Verona). A hipersensibilidade auditiva ora distorce os sons graves, ora amplifica os agudos. A protagonista define a sensação como “um grilo dentro da minha cabeça”. A condição que a acomete e dá título ao filme, “Tinnitus“, não é criação do diretor e roteirista Gregório Graziosi, que estreou nos cinemas com “Obra” (2014). Pelo contrário, é um problema real que, segundo uma pesquisa do JAMA Neurology, atinge 17% da população mundial adulta, o equivalente a 740 milhões de pessoas. Na obra, esse fator impacta diretamente as relações interpessoais da personagem e, claro, sua busca pelo sucesso no esporte. O chiado é um mal inconciliável que a qualquer momento pode prejudicar sua performance nas águas.
Apesar do pano de fundo nos saltos ornamentais, o longa não é exclusivamente um filme de esporte. Na sua essência, ele se propõe a demonstrar como os efeitos da condição extrapolam a questão esportiva e se alastram para a relação matrimonial com o marido e médico Santos (André Guerreiro). O problema esteve presente no momento mais importante da carreira de qualquer atleta, nas Olimpíadas. Competindo em casa, no Brasil, a audição ruidosa traiu Marina e, consequentemente, sua parceira Luisa (Indira Nascimento). Anos depois, a ex-atleta é relegada à condição de mera animadora. Exposta em aquários, a saltadora se torna sereia, alimentando os sonhos infantis, exposta em um aquário. A exposição se materializa também no ambiente médico. O esposo, otorrino, exibe a esposa aos seus colegas de profissão não como um troféu, mas como um case de sucesso, uma paciente modelo que ele conseguiu inibir os chiados e zumbidos onipresentes. Ou seja, Marina, a todo momento, atrai olhares, algumas vezes de crianças deslumbradas, em outras de médicos curiosos.
Poucos sequer podem entender o que ela passa. O personagem de Antônio Pitanga, por sua vez, consegue entendê-la. Ele atua quase como um mentor na vida de Marina, fala do alto da experiência para aquela mulher ainda jovem que lida com o problema. O ator possui um magnetismo ímpar em cena. Mesmo não aparecendo em demasia, ele se destaca bastante e eleva o valor de produção de “Tinnitus“. Outro fator que facilmente se destaca no longa é a condução de Gregório Graziosi. O diretor não só possui um elevado apuro técnico, com composições equilibradas, harmoniosas e com um uso adequado do espaço cênico. Ele transmite o incômodo constante com muita facilidade. Nesse aspecto, ele desenvolve, na maior parte do longa, um terror corporal introspectivo. Se distancia, portanto, dos extravasamentos e grafismos de nomes como Cronenberg e, mais recentemente, Julia Ducornau, de “Titane” (2021). A violência, apesar de física, é invisível, mas plenamente perceptível pelo espectador. A experiência torna-se, então, sensorial. A imprevisibilidade das crises se manifesta a partir do momento em que qualquer ruído pode infligir dor na protagonista. Todos estão expostos aos sons, é quase impossível fugir de chiados e ruídos, principalmente quando a hipersensibilidade não pode – ou deixa de – ser tratada.
O conceito seria totalmente abstrato e inócuo sem o excelente design de som do longa. É quase mandatório: filmes que tratam de audição precisam ter um ótimo trabalho sonoro. “O Som do Silêncio” (2020) é um bom exemplo, assim como “Tinnitus“. Aqui, o trabalho sonoro, assinado por Fábio Baldo, coloca o público dentro da cabeça de Marina. Sentimos o tal “grilo” que ela reclama. Isso é pontuado desde o início da obra, quando a TV parece ter seu som distorcido, ou nas variações e amplificações ao longo da exibição do hino nacional, antecendendo o evento olímpico. O desconforto e as altas frequências impactam também o espectador. Esse exercício de alteridade, o público se colocando no lugar da protagonista, consegue ser de fato efetivo e gerar empatia e maior conexão com a narrativa. O mérito não se restringe em submeter o elemento da linguagem com uma ação discursiva, se estende também para as sutilezas nesses ruídos, tanto em intensidade quanto em identidade sonora. Cada um possui características próprias.
“Tinnitus” é um drama sensorial desconfortável e incômodo. Ao transmitir as mesmas sensações da protagonista ao público, a obra materializa o horror corporal retratado em realidade. As questões de conflito e ascensão no esporte que permeiam o longa flertam com o psicossexual. Os desentendimentos e rivalidades no ambiente esportivo são pungentes, as pessoas se odeiam e se amam na mesma proporção. As tensões sexuais e a competitividade exacerbada deixam no ar essa dúvida entre o que separa amor e ódio. É interessante também como a cultura japonesa ocupa uma função discreta e importante no longa. A reafirmação dos elementos nipônicos funcionam quase como uma forma de atrair a classificação para Tóquio 2020. Uma pena que cenas pontuais envolvendo o salto tenham efeitos bem abaixo da qualidade do restante da obra, mas nada que me faça esquecer as cenas etéreas da nadadora se movendo na água.