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Sem Ursos

Não há ursos. Isso não faz sentido.

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2022

Sem Ursos

Sem Ursos”, finalizado por Jafar Panahi em maio de 2022, é mais um filme singular desse diretor iraniano, sempre às voltas com o mau humor das autoridades de seu país, o Irã. Autor de “Taxi” e outras pérolas, foi preso no dia 11 de julho de 2022, quando visitava o Ministério Público local com advogados e colegas para perguntar sobre o bem-estar e o paradeiro dos colegas cineastas Mohammad Rasoulof e Mostafa Aleahmad, detidos três dias antes. Jafar, que ganhou prêmios nos festivais de Veneza e Berlim, foi condenado a seis anos de cadeia. Já havia sido sentenciado em 2010 por fazer propaganda contra o governo, mas conseguiu liberdade condicional, embora impedido de sair do país e banido de dirigir filmes por vinte anos. Seu filho, Panah Panahi, estreou em 2021 com o esplêndido “Pegando a Estrada”. Depois de iniciar uma greve de fome, Jafar foi solto sob fiança, ainda em 2022 – e em abril último fez sua primeira viagem internacional desde 2010, visitando a filha na França.

Normalmente não seria o caso de alinhar esse tipo de detalhe sobre as idas e vindas do realizador, mas as circunstâncias assim o exigem – havia um lugar vazio ao lado do nome “Jafar Panahi” na coletiva de imprensa do Festival de Veneza para “Sem Ursos”. Como escapar dessa vigilância é sempre um ato difícil e arriscado, e tem vibrações estéticas: numa sequência, o cineasta hesita em atravessar a fronteira e entrar na Turquia, dando meia volta e retornando ao vilarejo do lado iraniano, onde comanda à distância a produção do filme dentro do filme. Ele e seu assistente estão caminhando por uma colina rochosa, ao fundo milhares de luzes brilham, é a cidade turca: Panahi pergunta onde fica a linha de fronteira, o assistente aponta para o chão sob seus pés. Assustado, ele recua, seus olhos brilham de medo – e se fixam na câmera, quebrando a quarta parede e revelando sentimentos ambíguos sobre fugir do país natal, mesmo com o risco iminente da prisão.

Dizem os veteranos que a necessidade e coragem são as mães da invenção cinematográfica: o fato é que Panahi adaptou sua linguagem (e a metalinguagem) dentro desses limites, encontrando uma fórmula poética, se é que cabe o emprego do adjetivo, para expressar-se. Até quando a fórmula vai funcionar é outra questão. Um regime autoritário como o iraniano é capaz de dar vazão a uma expressão audiovisual moderna e sutil, veiculando uma atmosfera política pesada em estado latente, quase imperceptível, mas presente. Mais uma contradição desse país riquíssimo em tradições culturais, e contido numa religiosidade conservadora e fundamentalista. Os filmes de Panahi são extensão da sua própria vida, do seu embate diário para exercer o ofício – e claro, seus impasses ganham relevo pela repercussão internacional de suas produções. “Isto não é um filme“, que dirigiu em 2011, foi contrabandeado para Paris em um pendrive dentro de um bolo. A realidade, entretanto, é implacável – certa vez, saindo da cadeia, disse: olho para trás e ainda há tantos alunos, professores, trabalhadores, advogados, ativistas lá dentro… como posso dizer que estou feliz?

De volta a Joban, o vilarejo perto da fronteira turca, o diretor encara a inevitável falta de sinal da internet. Como dirigir à distância? Seu anfitrião fala de uma cerimônia que está ocorrendo na aldeia, antessala de um casamento. Panahi sabe que precisa se manter incógnito, mas não resiste e empresta uma de suas câmeras ao aldeão. Em seguida, ele mesmo tira fotos perto do quarto que alugou, e surge a suspeita que uma das fotos flagrou a noiva com um amante. A tensão que se segue – narrada de forma distanciada, mas presente – faz com que “Sem Ursos” possa ser visto como uma alegoria das dificuldades de Panahi com o regime. Ele insiste que não tirou nem possui tal foto, o líder local aceita a negação, mas…convoca-o para uma sessão de juramento diante do conselho da aldeia.

Nesse ambiente de ansiedades cruzadas, que preenchem a atmosfera, ninguém é capaz de assegurar que está dizendo a verdade. Um limite se impõe, e parece atingir o próprio cineasta e seu projeto artístico como um todo – até quando isso vai durar? Em uma bela cena, Panahi cruza com um velho, que o convida para entrar e tomar chá. Seguem juntos depois, por questões de segurança. Tem ursos por aí, diz o velho: quando se separam, Panahi pergunta sobre os ursos. Não há ursos. Isso não faz sentido. As histórias são inventadas para nos assustar, responde o companheiro.

3 Nota do Crítico 5 1

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