Curta Paranagua 2024

Sem Ursos

Não há ursos. Isso não faz sentido.

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2022

Sem Ursos

Sem Ursos”, finalizado por Jafar Panahi em maio de 2022, é mais um filme singular desse diretor iraniano, sempre às voltas com o mau humor das autoridades de seu país, o Irã. Autor de “Taxi” e outras pérolas, foi preso no dia 11 de julho de 2022, quando visitava o Ministério Público local com advogados e colegas para perguntar sobre o bem-estar e o paradeiro dos colegas cineastas Mohammad Rasoulof e Mostafa Aleahmad, detidos três dias antes. Jafar, que ganhou prêmios nos festivais de Veneza e Berlim, foi condenado a seis anos de cadeia. Já havia sido sentenciado em 2010 por fazer propaganda contra o governo, mas conseguiu liberdade condicional, embora impedido de sair do país e banido de dirigir filmes por vinte anos. Seu filho, Panah Panahi, estreou em 2021 com o esplêndido “Pegando a Estrada”. Depois de iniciar uma greve de fome, Jafar foi solto sob fiança, ainda em 2022 – e em abril último fez sua primeira viagem internacional desde 2010, visitando a filha na França.

Normalmente não seria o caso de alinhar esse tipo de detalhe sobre as idas e vindas do realizador, mas as circunstâncias assim o exigem – havia um lugar vazio ao lado do nome “Jafar Panahi” na coletiva de imprensa do Festival de Veneza para “Sem Ursos”. Como escapar dessa vigilância é sempre um ato difícil e arriscado, e tem vibrações estéticas: numa sequência, o cineasta hesita em atravessar a fronteira e entrar na Turquia, dando meia volta e retornando ao vilarejo do lado iraniano, onde comanda à distância a produção do filme dentro do filme. Ele e seu assistente estão caminhando por uma colina rochosa, ao fundo milhares de luzes brilham, é a cidade turca: Panahi pergunta onde fica a linha de fronteira, o assistente aponta para o chão sob seus pés. Assustado, ele recua, seus olhos brilham de medo – e se fixam na câmera, quebrando a quarta parede e revelando sentimentos ambíguos sobre fugir do país natal, mesmo com o risco iminente da prisão.

Dizem os veteranos que a necessidade e coragem são as mães da invenção cinematográfica: o fato é que Panahi adaptou sua linguagem (e a metalinguagem) dentro desses limites, encontrando uma fórmula poética, se é que cabe o emprego do adjetivo, para expressar-se. Até quando a fórmula vai funcionar é outra questão. Um regime autoritário como o iraniano é capaz de dar vazão a uma expressão audiovisual moderna e sutil, veiculando uma atmosfera política pesada em estado latente, quase imperceptível, mas presente. Mais uma contradição desse país riquíssimo em tradições culturais, e contido numa religiosidade conservadora e fundamentalista. Os filmes de Panahi são extensão da sua própria vida, do seu embate diário para exercer o ofício – e claro, seus impasses ganham relevo pela repercussão internacional de suas produções. “Isto não é um filme“, que dirigiu em 2011, foi contrabandeado para Paris em um pendrive dentro de um bolo. A realidade, entretanto, é implacável – certa vez, saindo da cadeia, disse: olho para trás e ainda há tantos alunos, professores, trabalhadores, advogados, ativistas lá dentro… como posso dizer que estou feliz?

De volta a Joban, o vilarejo perto da fronteira turca, o diretor encara a inevitável falta de sinal da internet. Como dirigir à distância? Seu anfitrião fala de uma cerimônia que está ocorrendo na aldeia, antessala de um casamento. Panahi sabe que precisa se manter incógnito, mas não resiste e empresta uma de suas câmeras ao aldeão. Em seguida, ele mesmo tira fotos perto do quarto que alugou, e surge a suspeita que uma das fotos flagrou a noiva com um amante. A tensão que se segue – narrada de forma distanciada, mas presente – faz com que “Sem Ursos” possa ser visto como uma alegoria das dificuldades de Panahi com o regime. Ele insiste que não tirou nem possui tal foto, o líder local aceita a negação, mas…convoca-o para uma sessão de juramento diante do conselho da aldeia.

Nesse ambiente de ansiedades cruzadas, que preenchem a atmosfera, ninguém é capaz de assegurar que está dizendo a verdade. Um limite se impõe, e parece atingir o próprio cineasta e seu projeto artístico como um todo – até quando isso vai durar? Em uma bela cena, Panahi cruza com um velho, que o convida para entrar e tomar chá. Seguem juntos depois, por questões de segurança. Tem ursos por aí, diz o velho: quando se separam, Panahi pergunta sobre os ursos. Não há ursos. Isso não faz sentido. As histórias são inventadas para nos assustar, responde o companheiro.

3 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta