Festival Curta Campos do Jordao

Segredos em Família

O choque pelo choque

Por Pedro Mesquita

Durante o Festival do Rio 2022

Segredos em Família

Um dos mais interessantes textos críticos publicados sobre lançamentos recentes é aquele do crítico canadense Lawrence Garcia a respeito do filme “Titane” (Julia Ducournau, 2021). Garcia questiona até que ponto o conteúdo gráfico do filme de Ducournau (em que abundam cenas fortes, como as relações sexuais da protagonista com carros) pode ser considerado verdadeiramente transgressivo — no sentido de uma obra de arte conceitualmente ambiciosa, que leva o pensamento do espectador a lugares não antes atingidos — ou se a sua transgressão consiste numa mera exibição de imagens destinadas a chocar o espectador. Sobre isso, ele comenta: “Num contexto cultural em que o prêmio máximo do festival de cinema mais prestigiado do mundo pode ir para um filme em que uma mulher fode um carro — duas vezes — e em que nenhuma imagem, não importa o quão chocante, parece incapaz de ser assimilada às linhas dominantes de discurso, qual é o lugar da crença pessoal e da convicção estética?”. Em outras palavras: o quão transgressivo é o seu filme se a plateia de Cannes o recebe de braços abertos? 

A resposta: segundo Garcia, o problema reside em tomar o conceito de “transgressivo” na sua acepção moral, e não imaginativa. Sob um ponto de vista moral, “Titane” é um filme transgressivo, embora sob o ponto de vista imaginativo ele não o seja, pois ele não consegue, a partir das suas imagens chocantes, elaborar um pensamento novo sobre os temas que ele deseja discutir. 

Toda essa provocação pode perfeitamente se aplicar a “Segredos em Família”. O filme de Jorge Riquelme Serrano é uma dessas obras cujo impacto pretendido consiste em bombardear o espectador com uma série de eventos desagradáveis, dentre os quais uma cena de estupro com aproximadamente dez minutos de duração. A partir dos questionamentos colocados acima, resta perguntar: será essa uma transgressão moral — que se contenta com a mera exibição de assuntos sórdidos — ou uma imaginativa?

Tratemos de explicar, ao menos, como o filme chega até esse ponto. “Segredos em Família” conta a história de uma família pequeno-burguesa que viaja a uma ilha remota, no sul do Chile. Em seus instantes iniciais, não há muito o que poderíamos chamar de um desenvolvimento narrativo tradicional: vemos a família conversando sobre assuntos do seu cotidiano (principalmente futilidades) e, no meio disso tudo, testemunhamos no máximo uma discussão sobre a possibilidade ou não de comprarem a ilha — Ana (Millaray Lobos) e seu marido Alejandro (Gastón Salgado) defendem a sua compra e tentam convencer os pais de Ana, Antonio (Alfredo Castro) e Dolores (Paulina García), a ajudá-los financeiramente. 

Mas, em verdade, não é disso que o filme trata. Este acontecimento, do qual surge uma discordância e uma certa rixa entre os integrantes da família, serve apenas para instalar no filme um clima de inimizade que fará aparecer as suas verdadeiras intenções: o que “Segredos em Família” busca discutir, enfim, é a decadência moral da burguesia. Passamos a testemunhar, por entre os momentos de cordialidade, algumas agressões se manifestando entre eles. Alejandro, o único homem pardo da família, é alvo de ofensa racista por parte de Antonio; Consuelo (Consuelo Carreño) e Nicolás (Nicolás Zárate) são, em momentos diferentes da narrativa, alvo de abuso sexual…

Outro incidente desagradável acontece, levando-os mais uma vez ao extremo de suas emoções: após o abuso, Nicolás os abandona na ilha, deixando-os sem água e sem meios para retornar ao Chile no fim da viagem. Uma nova série de desentendimentos se inicia, e o filme atinge o seu ápice dramático quando Antonio resolve descontar as suas frustrações sexuais estuprando a própria neta, Consuelo. 

A longa cena é filmada sob as mesmas estratégias que o filme adotava até então — fotografia dessaturada, plano estático e distanciado da ação… enfim, signos extremamente manjados do declínio moral das personagens —, mas a sua duração e a sua intensidade chocam e repelem o espectador. Qual o motivo de revelar de maneira tão realista, tão transparente, um ato tão sórdido?

Existirão, sem dúvidas, aqueles que identificam neste tipo de atitude uma potência política, na medida em que o filme realiza uma denúncia social sobre a sensação de impunidade de que são investidos os homens quando dotados de uma certa dose de privilégios e quando suficientemente escondidos, não observados. Mas para ser considerado como um bom filme político, o filme precisaria — assim como “Titane” o precisaria — construir ideias, estimular a imaginação do espectador. “Segredos em Família” é, ao contrário, um filme fatalista e tautológico, que se pauta na repetição enfadonha das mesmas ideias: apresentando-nos personagens que são maus desde o início, ele não faz nada senão reforçar, durante toda a projeção, a sua maldade. O filme é, portanto, uma completa perda de tempo.

1 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

  • Acabei de assistir e tive a mesma impressão que você, Pedro. Parece que só por ser chileno (o cinema chileno passa, inegavelmente, por uma boa fase) e mostrar cenas chocantes o pessoal tem necessidade de afirmar que o filme é bom. Mas não é, realmente é uma repetição de comportamentos e cenas feitas com o intuito de chocar o público. Mas o debate sobre a decadência burguesa fica raso demais. Realmente perdi tempo.

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