Retratos Fantasmas
Que história é essa, Kleber?
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Pode parecer fácil absorver, inteiramente e logo de imediato, as obras do realizador brasileiro e pernambucano Kleber Mendonça Filho, que levou sua Recife para o Mundo, tornando-se inegavelmente uma influência internacional, dentro dos principais festivais de cinema, e inclusive como um dos jurados oficiais do Festival de Cannes. Mas não é. Pelo contrário, seus filmes querem mesmo é complexar a simplicidade, com antropologia pop e existencialismos trocados em mesas de bar. De uma forma bem tosca, mas bem tosca mesmo, podemos compará-lo a Anitta, visto que cada um, em seu ambiente, conseguiu quebrar a barreira e ganhar reconhecimento mundial. Se a cantora “preparou” seu terreno pelo viés musical, o diretor de “Bacurau” o traçou pela sétima arte. De crítico à cineasta. Quase um François Truffaut menos existencialista e mais barrista social. Kleber gosta mesmo é de criar histórias ouvidas peculiares sobre pessoas para outras pessoas. Mas o que Kleber Mendonça Filho, o KMF, como se intitula, fez para ganhar esses holofotes?
Sim, a resposta está fora e inclusas dentro de seus próprios filmes, cujas narrativas nos apresentam um universo único e que dialogam o todo tempo com esse popular típico, idiossincrático, suburbano, característico, caseiro, genuíno e de comportamento de massa. Talvez seja isso. Talvez KMF tenha a mais pungente das necessidades: de conservar uma nostalgia perdida (e universal) pela estética da forma orgânica, mais possível, menos clássica e muito mais de conceito livre. Assim, a consequência é que essas imagens, presentes e datadas no exato momento em que são capturadas, ganham contemporaneidade para serem eternizadas em uma grande caixa amadora de criação, artifício este que permite o ruído, em que o barulho atravessado e vazado deixa de ser erro e se incorpora ao protagonismo do ambiente objetivado.
Em seu mais recente filme, o documentário experimental “Retratos Fantasmas”, exibido aqui em sessão especial do Festival de Cannes 2023, Kleber evoca ao público uma ode de amor ao cinema, e principalmente ao tempo de uma época que era possível sentir o tempo, tudo por costurar uma narrativa observacional e analiticamente pessoal, com a narração acompanhada, pelo próprio diretor, de explicar invisível automatizado do dia-a-dia – algo como uma descrição nouvellevagueana, ora pragmática e de poesia coloquial, ora entre a desesperança e a crença de que dias melhores virão. Essas percepções verborrágicas buscam acima de tudo, e ao mesmo tempo, união e apelo. Uma por querer agregar cinefilia (e não precisar ter que convencer “escolhas estranhas”). Já a outra pede desesperadamente por uma pausa para que um pouco do passado seja conservado. De que essa nostalgia não suma totalmente e se torne memórias subjetivas de um museu abandonado.
“Retratos Fantasmas” deseja reacender uma metafísica do mais básico das sensações “gambiarras”, como se fossemos aviltados por imagens-gatilhos, há um linha tênue entre o abstrato invisível e a exposição personificada dessas percepções, há uma metalinguagem da própria vida acontecendo enquanto vemos os acontecimentos e ausências espectrais do antes. Viu, não é fácil?. O documentário, de propósito intimista, é muito mais que sobre um cinema que ainda vive no centro de Recife, o São Luiz, e sim quer contar a passagem de tempo dos acontecimentos comportamentais, políticos e sociais desse passado. E de todos os outros cinemas, que viraram ruínas ou se transformaram em igrejas evangélicas ou em outra coisa qualquer inexplicável, e que revelam algumas verdades sobre a vida em sociedade.
O longa-metragem desenvolve sua narrativa pelo hibridismo temático, arraigando conversas com um motorista, que leva o diretor de um canto a outro da cidade, ora para rever, ora para pensar, ora para redescobrir. E/ou pela estrutura clássica informativa, com imagens de arquivo. “Retratos Fantasmas” acorda a obsessão que todo amante do cinema tem pelo o que é velho. “Aquele chiado do vinil”, “aquela riscos sujeirinha das películas em 35mm”, frases ouvidas de muitos de nós. Desde o início de sua carreira, KMF dança e canta este tema. Em 1992, realizou os curtas-metragens “Casa de Imagem” e “Homem da Projeção”. Em 2008, um filme sobre críticos. Podemos dizer então que Kleber, cujo profissional é impossível de dissociar do pessoal, é um homem estudioso do cinema. Um acadêmico que faz filmes e que cita referências fílmicas por se identificar com elas, como trazer a lembrança, e citação explícita, da realizadora, também pernambucana, Kátia Mesel. Um professor que arruma tudo para não ficar maçante a seus alunos. Por tudo isso, não é fácil traduzir “Retratos Fantasmas”, porque esse invisível todo trabalhado ainda está em movimento, vivo, em mutação e transformação, cujas ruas mundanas representam em tempo real galerias de arte, em que cada história, por mais banal que seja, dá um filme. Que histórias são esses, Kleber? Conta mais!