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Pedágio

O preço do ir e vir

Por Fabricio Duque

Festival do Rio 2023

Pedágio

Uma das coisas curiosas na ação de fizer filmes no Brasil é nossa predileção em usar (e esperar) metáforas para assim abordar (e definir) melhor as pautas sociais em que precisamos lutar no dia-a-dia. E além disso, o novíssimo cinema brasileiro cada vez traz mais uma atitude mais expressiva, mais passivo-agressiva, consequência que serve como auto-proteção. Nós brasileiros, ainda que vivenciemos tão livre e naturalmente nosso carnaval, somos o povo do mundo que mais mata quem é diferente do “padrão social”, especialmente transsexuais. Toda vez que uma obra audiovisual brasileira precisa usar esses temas, nós retrocedemos na escola evolutiva humana. Por que ser o que já se é incomoda tanto os outros? Quais são os critérios desse julgamento? E é dessa forma que “Pedágio” se apresenta, de forma simbólica. De uma taxa que é preciso pagar para se ir de um lugar para o outro, “cobrada pelo poder público ou por uma concessionária outorgada”. O mais recente filme da realizadora Carolina Markowicz não só quer expor nossas hipocrisias enquanto indivíduos sociais, como deseja uma necropsia de nossa sociedade. Sim, assim mesmo, nossa sobre nós mesmos. A diretora de São Paulo nos insere em um mundo cão bem à moda apocalíptica de uma sobrevivência para saber quem consegue se comportar pior perante seus próximos. 

Exibido no Festival de Toronto deste ano, e que depois integrou a mostra competitiva do Festival do Rio, “Pedágio” pode ser definido como um “soco no estômago”, ambientado em uma terra “faroeste moderno” em que reina o atraso machista, egoísta e individualista e a reação de seus pertencentes geográficos é subir o tom dos tratamentos sociais com defensiva antecipada a iminentes ofensas. Essa sobrevivência ininterrupta (do mais conhecido “jeitinho brasileiro” de “levar vantagem em tudo”) faz com que todos ali vivam sempre no limite de suas forças e de suas paciências, buscando “alívio alienação” em pessoas que pensem por eles e que os conduza a “uma vida melhor”. Isto desencadeia a vulnerabilidade que facilmente será explorada pelos mais espertos. Alguns “acordaram” do “transe” imposto e aceito, no melhor estilo de “Ensaio Sobre a Lucidez”, livro escrito pelo português José Saramago. Outros não. E “Pedágio” consegue irretocável e precisamente personificar o invisível das limitações humanas em muitas momentos, mas a cena do final (o embate de olhares entre mãe e filho) não só imprime tudo o que é preciso ser traduzido, como se firma em uma das melhores cenas da História do Cinema Brasileiro, que “mete mesmo o dedo na ferida” com sinestesia, humanismo, empatia, perdão, compreensão, maturidade elevada e solidariedade de um, e culpa, vergonha, humilhação, arrogância, ignorância, frustração, infantilidade e incompreensão da outra. Tudo envolto em uma atmosfera neon e futurista de um presente sonhado. Sim, quem nunca pecou que atire a primeira pedra.

A narrativa de “Pedágio” é naturalista, de captação orgânica de um tempo metafísico em situações cotidianas, entre penumbras, madrugadas, ócios silenciosos, barulhos mais acentuados e entre luzes da cidade de Cubatão, que parece em fogo. De um lado, a “estabilidade” do trabalho. Do outro, performances jazzistas de uma drag queen em ação. De um lado, a mãe que censura e alimenta “todo mundo está comentando”, “apoiada” por seu namorado tipicamente machista e bruto. Do outro, o filho, que sofre violência por ser chamado de “traveco”, mas mesmo assim continua usando filtro rosa no óculos. Nós somos imersos em um mundo perdido e desgovernado de aparências, de falsa moralidade, como por exemplo, “rapidinhas” traições na floresta e/ou a vontade do Madero e/ou roubos para “complementar renda”. Esse comportamento desviado de percepção invertida ocasiona o aparecimento de “cursos milagrosos”. Um deles, a “ciência” da cura gay (a “luta contra a pederastia”), que se populariza mais entre os mais pobres e evangélicos, que “doutrina” (e “conserta as coisas”) as “ovelhas desgarradas” de Cristo e causa “sacrifícios” financeiros no bolso dos que não tem nada, mas perpetuam a máxima da tradicional família brasileira. Ilegalidade sim, é permitido. Se vestir de mulher, não, nunca. 

Esse também foi tema do filme “Clube Zero”, de Jessica Hausner, que foi exibido na mostra competitiva no último Festival de Cannes, causando polêmica em seus espectadores pela abordagem mais agressiva. Em 2019, o longa-metragem “Boy Erased: Uma Verdade Anulada”, de Joel Edgerton, trouxe assunto semelhante e acabou por ser impedido de estrear nos cinemas brasileiros. Pois é, neste exato momento, alguma bancada governante deve estar criando algum projeto de lei que proíba homossexuais de existirem. “Pedágio” pode até parecer que é um tema datado e exclusivamente ficcional nos dias de hoje. Mas não. A força e a potência do filme estão na luta. No grito histérico, na atitude radical de nunca desistir desses que nasceram “diferentes”. Talvez essa limitação julgadora seja um vício, um hábito, um costume já internalizado. E também uma Síndrome de Estocolmo. Suas “vítimas” acabam aceitando e se apaixonando por seus algozes, neste caso, o sistema geral, que só tem poder por frases como “O que eu posso fazer, nada adianta?”. Só que “Pedágio” não só vira todo o jogo de poder, como possibilita uma oportunidade de ressignificação. De redenção dos pecados para a vida eterna. Será que a mãe aceitou? Será que esse novo hábito a fará mudar? Cenas dos próximos capítulos. 

4 Nota do Crítico 5 1

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