Passou
Passou, mas voltou
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2020
A inércia do cinema vem de um estancamento formal da produção cinematográfica. Uma burguesia que passa a compreender os campos estéticos através de suas ideologias estoicistas e naturalistas. É a simplicidade de um sentimentalismo próprio da herança mais abjeta do racionalismo fracassado. É o esteticismo que mira a tradição conceitual da burguesia e acerta a quinta categoria da forma.
Mas está claro que não há como negar a unidade de “Passou”, já que sua sustentação é dada através do caráter psicológico de quem a produz. Onde Georgi Plekhanov diz: “A mentalidade social de uma época é condicionada pelas relações sociais dessa época. Não há outro lugar em que isso fica mais evidente do que na História da Arte e da Literatura”. Está claro que Plekhanov não estava a debater o cinema, mas como Jairo Ferreira nos ensina, é possível que parte da teoria literária, em debates específicos, seja aplicado no âmbito cinematográfico (aqui o crítico paulista se referia em especial à Pound, mas julgo a frase do Russo absolutamente correta). Ou mesmo Trótski: “a relação entre forma e conteúdo é determinada pelo fato de a nova forma ser descoberta, proclamada e desenvolvida sob a pressão de uma necessidade interna, de uma demanda psicológica coletiva que, como todas as coisas, […] possui raízes sociais”. (Citação de Terry Eagleton).
Com isso está explícito que “Passou”, reiterando, possui uma unidade a partir de sua forma e de seu conteúdo. De forma intrínseca, os dois campos conseguem dialogar de maneira efetiva dentro da proposta dada aqui. Afinal, qual a proposta? Um estoicismo esteta? Uma padronização da vida? Um cotidiano? É difícil compreender a inocuidade aqui apresentada, para além da verve à la Caetano Gotardo. Aos simpatizantes do (in)significante, da forma, proposta por ambos diretores, a obra exposta aqui, de Felipe André Silva pode vir a interessar ao debate.
Os comentários feitos acima não se referem necessariamente ao que delimita a encenação, que surge como um efeito particular desse drama ali apresentado. Pretensões literárias à parte, o texto que surge na tela é a mímica da concepção pequeno-burguesa dessas relações, que ocorrem entre as quatro paredes, um elemento extra fílmico sempre dado através da oralidade. E toda essa relação de uma fala pausada, sempre explicitando uma interpretação, vai contra esse naturalismo da burguesia concretista (trocadilho terrível de concreto e o movimento). Existe uma consciência de insignificância para além daquilo que é dado na tela, mas não podemos dizer o mesmo dessa relação do espaço, corpo e tempo. Onde a necessidade de estender os planos até sua saturação não revela mais que um pretensiosismo formalista que quer agradar os detentores do capital intelectual e do formalismo (a)teórico. Sem grandes reverberações, tudo se dá através dessa estrutura que concebe esse apartamento como palco dessas ações deliberadamente esvaziantes.
Se antes houvesse uma proposta autocrítica dessa forma ou mesmo dessa síntese redundante de uma interpretação, de Maiakovski à Brecht, seria possível evocar os Campos em sintonia de pequeno-burguesia. Ora, mas sem compreender as (re)formas prático-formais dos primeiros e reconhecer aqui a digressão deturpante estruturalista do terceiro, é impossível despender o esforço do dígito virtual para que se relacione qualquer proposta com algum experimento no campo formal através dessa falta de materialidade, própria, novamente, de um pensamento (a)crítico da pequena burguesia.
A citação à Kleber Mendonça Filho feita nos créditos iniciais, aliada à música de letra verborrágica e consciente de sua crise existencial, amorosa, nos lembra que FHC foi seccionado do concretismo e o mesmo depois de tratar de uma dependência capitalista, ao lado de Theotônio, irá negar qualquer aliança.
Não é que “Passou” seja problemático em sua forma ou conteúdo, é o casamento dessa tentativa, constante, da burguesia de compreender duas frentes dialéticas, duais, como oposição de exclusão do enquadramento e da montagem, já está datada à alguns anos. E está claro, através do trabalho que faço ao longo dos anos aqui neste site que minhas palavras não podem se resumir ao trabalho filmado por Felipe, mas à um cinema brasileiro contemporâneo que trata de maneira unilateral o cinema, um posicionamento dialético diante do mundo, crítico, político, que o resumo conteudista, dramático dessa pequena-burguesia, é a prova cabal que a forma assume seu momento histórico. A inércia vista na contemporaneidade, por um lado dessa frente real, não é à toa.