Os Órfãos
Nau desgovernada
Por Adriano Monteiro
Adaptar um grande clássico literário do terror psicológico não é uma tarefa fácil. É o que prova a nova aposta da Universal Pictures, “Os Órfãos”, baseado no romance “A Volta do Parafuso” de Henry James. O livro já ganhou uma versão elegante de Jack Clayton para o cinema em 1961. O clássico “Os Inocentes” foi escrito para as telas pelas mãos de Willian Archibald e Truman Capote em belo exercício de adaptação e experimentação do suspense sobrenatural sem cair nas tentações do exagero, muito devido, também, as limitações técnicas da época. O contrário acontece em “Os Órfãos”, mais semelhante “A Maldição da Residência Hill” série da Netflix, com uma produção de muitos recursos e nomes como o veterano Steven Spielberg. No entanto, a direção de Flora Sigismond entrega um trabalho inconsistente mesmo com todos os esforços estéticos.
A base narrativa segue ao do romance, assim como grande parte das histórias do gênero de terror: os protagonistas recebem um chamado, vão ao encontro do desconhecido e passam por situações assustadoras. O local é quase sempre uma casa mal-assombrada afastada da civilização, há os duvidáveis moradores da região e, claro, algumas pitadas de sobrenatural. A fórmula pode sofrer modificações de tema, tom e atmosfera, mas o princípio é o mesmo. Pode-se comparar casos como “Corra!” do badalado Jordan Peele à comercial saga da boneca “Annabelle”. Em “Os Órfãos”, Kate (Mackenzie Davis) é uma professora convidada para lecionar uma garota em uma mansão afastada no estado do Maine, EUA. Ao chegar é maravilhada pela belíssima construção gótica, com estátuas sombrias, jardins em labirinto, espelhos d’água e algumas aranhas.
Lá é recepcionada pela veterana da casa, a senhorita Grose (Barbara Marten), a qual repete a todo momento a qualidade das crianças de serem puro-sangue e seu papel de servi-las, embora tais afirmações nunca levem a lugar nenhum na narrativa proposta. A estranheza começa logo de cara com o primeiro de muitos jump scare, técnica utilizada no cinema de terror para causar sustos fáceis no público com uma mudança abrupta na imagem, ao apresentar Flora, na pele de Brooklynn Prince. A atriz mirim mostrou serviço no excelente “Projeto Flórida” de um dos mais interessantes diretores contemporâneos, Sean Baker, o que causa estranhamento o pouco aproveitamento da atriz no longa em questão. Não muito diferente é o astro da série “Stranger Things”, Finn Wolfhard, que interpretou o embaraçoso segundo órfão da trama, Miles, em um constrangedor galanteador, guitarrista rebelde e colecionador de aranhas.
Tudo parece vir do acaso em “Os Órfãos” em um sobrenatural que parece ter esgotado todas as suas fontes no primeiro susto. A narrativa carece de profundidade, principalmente, quando retrata a psicologia da sua personagem principal. Não é deixado espaço na história contada para embarcarmos na mente confusa de Kate. Seu passado sombrio (se é que há um) fica a cargo de uma mãe artista internada em uma casa psiquiátrica com muito pouco tempo de tela. A relação de amizade ou romance com uma colega de quarto também não é explorada. A arquitetura frágil da personagem é largada então às infinitas e preguiçosas cenas de loucura. São devaneios de horror dos mais fáceis. Surgem como epifanias aos olhos do espectador, como o aparecimento de mãos e aranhas engordadas como um passe de mágica. Um feitiço com pouca durabilidade.
Logo na metade, o filme parece se concentrar na rivalidade entre Kate e Miles. Ele, incorporado pelo falecido amigo Peter Quint, tenta seduzi-la e ameaçá-la. Ela tenta encontrar explicações, mas não pretende desistir da educação das crianças. O exercício final é uma típica final girl em confronto com o monstro em falta de propósito. É inegável a tentativa do roteiro de abraçar a luta psicológica da protagonista. De brincar com as percepções de sonho e realidade. No entanto, todo o processo fica pelo caminho. Em mais um jogo de inconsistências do que uma real valorização do gênero a qual o longa se propõe a ser. O resultado é uma obra que luta contra si mesma. Não consegue alcançar seus objetivos, mesmo exaurindo todos os recursos narrativos, ao forçar uma virada dramática no final, e estéticos, ao pegar emprestado uma linguagem desgastada do cinema de horror.
Em época de discussões quanto aos “pós-terror”, se o melhor seria ir pelo caminho da sugestão ou o inverso, o terror “formulaico” continua sendo eficiente se utilizado com criatividade. Não vale discutir qual a melhor forma de se fazer um filme de horror. Sejam eles psicológicos ou sobrenaturais ambos procuram contar histórias que não só entretém, mas funcionam como barômetro para uma sociedade com medo. Foi assim com o Expressionismo Alemão (“O Gabinete do Dr. Caligari”, “O Golum”) no fim da Primeira Guerra Mundial, os Monstros da Universal (“Frankenstein”, “A Múmia”) no auge da crise econômica durante a década de 1930 até os slashers movies (“O Massacre da Serra Elétrica”, “Halloween”) nas década de 1970 à 1990 e o torture porn (“Jogos Mortais”) e found footage (“A Bruxa de Blair”, “Atividade Paranormal”) dos anos 2000.
Com um vasto número de subgêneros é possível enxergar o terror como um universo a parte na cinematografia, um campo nato para a experimentação. O que vale relativizar o espaço deixado pelo gênero para obras das mais variadas possíveis. Assim como há espaço hoje para o susto dito mais sério da produtora A24 com “O Mal Não Espera a Noite – Midsommar” e “O Farol”, há para “Os Órfãos”, que pincela um pouco de tudo que já foi feito no gênero, mas se perde na empreitada de embarcar na psicologia humana com superficialidade. Embora a estética seja correta quanto ao que se propõe, o enredo enfraquece o clássico de Henry James. “Os Órfãos”, assim como os cavalos adestrados pelos personagens, soa como uma nau desgovernada em um oceano de muitas possibilidades melhores de entretenimento.