Oppenheimer
O Destruidor de Mundos
Por Pedro Sales
As bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki vitimaram mais de 200 mil pessoas, entre mortes instantâneas e por complicações pelo contato com radiação. Após os bombardeamentos, o Império Japonês se rendeu, pondo fim à Segunda Guerra Mundial. O responsável pelo Projeto Manhattan, cujo objetivo era a criação dessas ogivas nucleares, foi o físico teórico J. Robert Oppenheimer, personagem-título do novo filme de Christopher Nolan. Além de ser mais um filme do diretor e com um elenco estrelado, o burburinho em torno de “Oppenheimer” também se dá por dois outros motivos: a captação em IMAX 70mm, tecnologia que promove maior imersão e qualidade de imagem, e a data de lançamento que é dividida com “Barbie”, um embate entre filmes-eventos que ficou conhecido como Barbenheimer nas redes sociais, contrapondo o rosa choque e a bomba. É interessante ainda que o filme mesmo com uma complexidade temática, física quântica, não complica seu discurso. Pelo contrário, as tecnicalidades do processo são didaticamente explicadas em diálogos expositivos – mas não com o exagero do antecessor “Tenet”. O foco da obra não se restringe à criação das armas nucleares, mas estende-se para os fantasmas do protagonista, a culpa e responsabilidade pelas explosões, de forma mais subjetiva, e as acusações de envolvimento com o comunismo no passado.
Quando Robert Oppenheimer (Cillian Murphy) retorna aos Estados Unidos após estudar na Europa, é convidado pelo governo para comandar o Projeto Manhattan e construir a primeira arma nuclear do mundo. Ao longo das três horas de duração, o filme compreende um vasto período histórico, vai da universidade à velhice do protagonista. Assim, Nolan consegue efetivamente estabelecer um estudo de personagem, com uma evolução de Oppenheimer. Na introdução, por exemplo, a performance de Murphy dá vida a um cientista atormentado pelo intangível, dúvidas e teorias. A câmera de Hoyte Van Hoytema, inclusive, produz imagens etéreas de ondas, partículas e nêutrons em eminência de colapsar que lembram a formação do universo em “Árvore da Vida” (2011), mas se no filme de Malick é criação, aqui é destruição. Anos depois, ele já é um homem confiante no seu trabalho e sustentado por sua posição de poder. Essa narrativa se constrói por meio de depoimentos, o do próprio Oppenheimer e de Lewis Strauss (Robert Downey Jr.), presidente da Comissão de Energia Atômica dos EUA, que previa a criação da bomba de hidrogênio. Portanto, há uma fragmentação em dois polos: o primeiro chamado “fissão” e o segundo, filmado em preto e branco, “fusão” – em referência ao processo físico de cada bomba. Entretanto, a decisão em dividir a linha do tempo em dois diferentes depoimentos traz uma assimetria muito clara na montagem quanto ao papel de Downey Jr., que até o último terço do filme aparece esporadicamente. Isso acontece pois sua presença na história só se dá após a Segunda Guerra, a imponente atuação surge, então, quando o filme se encaminha para um “drama de tribunal”, que na prática não é tribunal.
Mesmo com um elenco estrelado, Christopher Nolan não extrai o melhor dele em “Oppenheimer”, principalmente de Florence Pugh, que interpreta Jean Tatlock, a amante do físico. Um problema nítido é a inaptidão do cineasta em construir romance. Em certo momento, dizem que Oppenheimer é um mulherengo, mas é difícil demonstrar – e convencer de – tal façanha. A assepsia se estende para as cenas de sexo, não há paixão. Nem após o ato os corpos relaxam da tensão. Para tentar fazer essas cenas funcionarem, a trilha impulsiona a ação – ou ao menos tenta. Por outro lado, quando Kitty (Emily Blunt), esposa do físico, evidencia o alcoolismo, a depressão e os problemas conjugais, a direção de Nolan se sai bem melhor. Talvez ele seja melhor em filmar conflitos do que paixões. Os dois constroem, além desse amor enrijecido que “só adolescentes e burros acham que entendem”, um forte senso de união, de companheirismo, sobretudo no processo de renovação de sua credencial de segurança. Já as relações profissionais e acadêmicas transitam entre o entusiasmo de um jovem professor que escreve no quadro para um só aluno à presunção e arrogância de quem está no cargo de maior poder que um físico poderia estar naquela conjuntura política. Quem quase sempre é tratado de igual para igual é apenas o General Groves, interpretado por Matt Damon em uma performance enérgica e dotada de humor. Aliás, por mais contraintuitivo que pareça ser em um filme com tal temática, os diálogos possuem uma alta carga irônica, o próprio protagonista que poderia parecer alguém rígido é dado a piadas e deboches.
Um grande mérito do longa é abraçar a complexidade de um personagem que ao mesmo tempo é gênio e uma figura extremamente controversa. Cillian Murphy mantém seu estilo impassível – quase frio e calculista – em uma trajetória de ascensão e queda. A humildade de outrora dá vez aos arroubos de poder. O cientista troca as salas da faculdade por Los Alamos, base militar e de pesquisa no meio do deserto. É líder do Projeto e também “xerife” da cidade, andando a cavalo, vestindo chapéu e sempre fumando. Embora o “pai da bomba atômica”, como ficou conhecido pela imprensa estadunidense, tenha virado capa de revistas, Murphy consegue colocar o personagem nessa vulnerabilidade emocional, um quase automartírio – do qual Nolan se compadece e amplifica com a comiseração de seu “herói”. Em primeiro lugar, isso se dá pelo envolvimento com o comunismo. Na criação da bomba, ele já era visto com desconfiança, após o Macarthismo (doutrina de caça às bruxas a comunistas nos EUA), a situação se intensificou mais ainda quando se opôs a criação da bomba de hidrogênio, o que motivou o descrédito do cientista. Em segundo lugar, há a questão moral da responsabilidade na criação de uma arma que matou milhares. “Agora eu me tornei a Morte. O destruidor de mundos”, é o que Vishnu diz em Bhagavad Gita, livro sagrado do hinduísmo. De certa forma, Oppenheimer também lida com o mesmo peso, se ora ele é saudado triunfantemente, com a bandeira dos EUA ao fundo, depois o clarão e as vozes vêm e o atormentam, visões do saldo de sua criação: a morte.
“Oppenheimer” é, antes de ser um filme sobre bomba atômica, culpa e política, um triunfo técnico. Este é um filme que explora as potencialidades audiovisuais do cinema, um filme feito para cinema. O trabalho de som, por exemplo, valoriza dramaticamente os silêncios e os estrondos. Em uma certa sequência, quando Oppenheimer de fato se torna o Prometeu Americano – título do livro-base para o filme -, a mise-en-scène de Nolan explora a inevitabilidade da explosão, a trilha sonora promove um crescendo e todo o ambiente adquire esse tom apocalíptico – moinhos enlouquecidos, roupas tremulando no varal -, o que aplaca a ansiedade do espectador que acompanha metodicamente a contagem regressiva do relógio do juízo final. Junto a isso, a decisão narrativa de ampliar tematicamente o longa parece extremamente acertada. Ao não se restringir ao Projeto Manhattan e trazer a discussão política à tona, o cineasta traz mais peso emocional para o personagem e consequentemente enriquece o filme. O núcleo sobre uma possível traição tanto em Los Alamos quanto de Oppenheimer são indutores de ansiedade iguais à feitura da ogiva nuclear em si. Quanto a isso, mesmo com três horas de duração a montagem sabe bem construir o ritmo, assim o filme não é “cansativo”. Talvez, o único problema seja apenas o aproveitamento de Downey Jr e de seu discurso nos dois primeiros terços de rodagem. Por fim, Nolan consegue construir um retrato digno do físico, vai do deslumbre com o projeto – os aterradores planos da explosão – à desilusão com os resultados – os close-ups em uma face desolada. Se antes ele era atormentado pelo que teorizava sozinho, depois passou a ser pela realização da teoria, os gritos de milhares e a destruição total.