O Lago do Ganso Selvagem
A despertada selvageria de cada um de nós
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2019
Exibido na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2019, “O Lago do Ganso Selvagem” apresenta-se como mais um exemplar do novíssimo cinema chinês, que integra a violência em um ambiência potencializada e realista, condensando o silêncio existencialista (a captação pausada do tempo dos pensamentos, algo como “Amor à Flor da Pele”, de Wong Kar-Wai), a cinefilia vanguardista Nouvelle Vague de Zhang Yuan, em “Mamãe”, a violência-ação de gângster de John Woo em “The Killer”. São inúmeras e infinitas que podem embasar o quarto novo filme de Diao Yinan, que já foi ator em “Amor Até as Cinzas”, de Zhangke Jia (talvez essa seja a melhor referência para traduzir a mise-èn-scene deste representante da China em Cannes) e roteirista em “Banhos” (1999), de Yang Zhang. Sim, seu realizador nunca deixou de beber na fonte e a cada longa-metragem importou mais um pouco do universo cinematográfico de seu país.
Continuando com a estética Pulp noir de seu filme anterior “Carvão Negro, Gelo Fino” (que mescla Quentin Tarantino de “Pulp Fiction – Tempo de Violência” com Nicolas Winding Refn em “Só Deus Perdoa”), Diao Yinan busca nesse uma maior fluidez da narrativa, como se a libertasse de sua própria criação e propósito, e, assim, ao perder os limites, pudesse reconfigurar a espontaneidade do ser e do agir, em uma ultra exposição da naturalidade. O que pode poderia ser considerado mais um filme de máfia moderna se caísse em mãos erradas, felizmente não acontece em “O Lago do Ganso Selvagem”. Nós somos imersos em um universo único, de dimensão alterada pelo tempo, de preciso equilíbrio entre o esperar e o acontecer.
A primeira cena já causa a tensão e fascínio, especialmente pela estética imagética de um noir clássico modernizado com um realista neon, muitas pela perspectiva da câmera. É muito mais que a violência de “delinquentes”, indivíduos sociais perante momentos de necessidade (e ou intrínseca psicopatia). Sim, é sobre a sobrevivência da existência, que rompe padrões morais, éticos e legais para assim impulsionar o verdadeiro viver e o “retirar” da dormência condicionada do mesmo pensar. Como um curso para ladrão de moto e ou as brigas para “marcar território”. É o constante e tensionado medo de perder. De se perder. Que ora se intensifica com a sensação sobrenatural dos ventos e trovoadas (a epifania da chuva e seus reflexos – silêncios e interferências), e sua câmera que avença lentamente, como se espreitasse à moda de “Twin Peaks”, de David Lynch.
“O Lago do Ganso Selvagem” representa um mundo blasé sem lei e com “nova forma de prostituição”, apresentado como uma notícia de televisão. Em fragmentos, sugestões e situações que despertam medos ao espectador. Parece uma experiência etérea e surreal da noite. Verdades são verbalizadas sem hesitações, só que assim parecem “mentiras”. E mais uma vez podemos invocar Edgar Allan Poe, que diz “Tudo o que vemos ou pareceremos não passa de um sonho dentro de um sonho”. É uma guerra urbana em uma cidade situada (submundos explorados) que se revela por detalhes (o guarda-chuva que “protege” a sujeira do sangue) por luzes artificiais, sombras e a iminente presença da morte (que por sua vez gera criatividade nas matanças).
Mas a narrativa também insere informação demais com um que urgente e desesperado. Sim, é um comum padrão que acontece na maioria das vezes quando o diretor descobre que o tempo do final do filme está acabando, como que por exemplo epilepsias e zoológicos, ainda assim “O Lago do Ganso Selvagem” envolve o público a ponto de o tirar da realidade com a projeção ficcional da realidade. Quanto mais surreal, mais adentramos e entendemos o absurdo mundo de seres em total desespero, e dessa forma podemos captar uma metafórica crítica a própria China e suas regras. Uma delas é censurar os filmes pela violência, como algumas cenas de “Bohemian Rhapsody” e “Deadpool”. Talvez essa seja a solução de revolução, velar a violência com a estética cult que afasta o tema. Pois é, Chico Buarque fez isso também em “Cálice” para criticar a ditadura e fazer com que as artes futuras sobrevivam, ofertando perspicácias criativas para burlar e/ou expressar a liberdade das ideias, usando a própria realidade em que vivemos como um espelho que reflete, faz questionar e perpetua épocas e regimes.