O Eternauta
Notícias de sequestros e assassinatos
Por João Lanari Bo
O verdadeiro herói de ‘El Eternauta’ é um Herói Coletivo, um grupo humano. Reflete assim, ainda que sem intenção prévia, meu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solitário (Héctor Germán Oesterheld)
“O Eternauta”, a série de seis episódios que emplacou na Netflix em 2025, foi baseada na famosa história-em-quadrinhos escrita por Héctor Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López, publicada na revista “Hora Cero Semanal” entre 1957 a 1959, com inúmeras continuações e reedições. A trama se concentra em uma invasão alienígena na Terra por meio de tempestade de neve tóxica que elimina a maior parte da população, e a consequente resistência dos sobreviventes em Buenos Aires. Seu protagonista é Juan Salvo, o eternalista, que num exercício de metaficção narra o ocorrido com Oesterheld.
Esta é a informação básica da incontornável Wikipedia: são inúmeras também as interpretações da obra, que apontam para a convergência da ficção científica do texto com o pano de fundo argentino de golpes e repressão política. Uma dessas leituras, de Sebastián Gago, sintetiza a narrativa como uma metáfora de parte da nossa história nacional, como se o autor tivesse tentado deixar-nos uma mensagem codificada de resistência à opressão (Gago é autor do livro “Sesenta años de lecturas de Oesterheld”).
Transportar todo esse imaginário para uma série contemporânea não era tarefa simples – méritos da realização, do roteiro à direção, passando pelos atores, entre eles o indefectível Ricardo Darín. E méritos igualmente para a Netflix, que difundiu globalmente “O Eternauta”, que se tornou a segunda série mais assistida dessa poderosa empresa midiática, e o primeiro lugar em países que não falam inglês (a segunda temporada está a caminho). Para uma produção do chamado “sul global”, é um feito.
A história começa em Vicente López – localizada na região metropolitana de Buenos Aires – onde o protagonista está com seus amigos Favalli, Lucas e Polsky. Enquanto os homens jogam truco, acaba a energia: ao mesmo tempo, paira um silêncio incomum na rua, já coberta por uma espécie de neve luminescente caindo em flocos arredondados do céu, além de cadáveres de transeuntes e veículos acidentados.
Curiosamente, Oesterheld menciona o clássico “Robinson Crusoé”, na abertura da primeira edição de sua obra, como inspiração inicial: a solidão do homem rodeado, preso, já não pelo mar, mas pela morte…tampouco o homem só, mas o homem rodeado por família e amigos…alheio à invasão que vem. O que vem é uma invasão alienígena, um pós-apocalipse, algo que remetia à Guerra Fria que grassava à época – e que volta a grassar nos dias de hoje, meio como farsa (Putin e Trump seriam os “farsantes”) mas perigosamente ancorada em bases reais, ou seja, os respectivos arsenais nucleares.
Atualizar a ficção dos anos de 1950 era o principal obstáculo que o diretor Bruno Stagnaro encarou – e superou, performando uma síntese dialética, por assim dizer. E não apenas em relação ao tempo original da origem, mas também referindo-se a todas vicissitudes que “O Eternauta” enfrentou e assimilou ao longo da conturbada história recente política argentina, pontuada de guerras, repressões e assassinatos. Por exemplo: Juan Salvo (Darín), na fabulação de Stagnaro, lutou na Guerra das Malvinas.
A adaptação atendeu aos requisitos da família Oesterheld – ser em espanhol e ambientada em Buenos Aires. Celulares, como não poderia deixar de ser, entram em cena, e personagens foram expandidos em seus dramas particulares, humanizando-os. Manter cada centímetro do corpo coberto, seja com casacos, máscaras, ponchos ou lençóis plásticos, era crucial. Besouros gigantes invadem a cidade, semeando o terror, transformando cidadãos e cidadãs em zumbis, um “personagem” recorrente nas infinitas séries que povoam a esfera de comunicação audiovisual que compartilhamos – mas aqui sem a aparência escatológica habitual, apenas…robotizados.
O destino trágico de de seu criador, Héctor Oesterheld, sem dúvida agregou uma materialidade histórica à nova versão de “O Eternauta”. Já em seus primeiros trabalhos manifestavam-se críticas ao capitalismo, ao colonialismo e ao imperialismo. Em 1968, escreveu uma biografia em quadrinhos de Che Guevara, censurada pela ditadura de Juan Carlos Onganía. Alguns anos depois, juntou-se aos Montoneros, grupo peronista de esquerda que rompeu com Peron e partiu para a luta armada, sendo derrotados pelo regime militar do general Jorge Rafael Videla.
Na clandestinidade, concluiu uma versão politizada de “El Eternauta”, também ilustrada por Solano Lopez. Foi sequestrado em 1977 pela ditadura e desapareceu – teria sido visto pela última vez em um centro de detenção secreto. Nessa altura suas quatro filhas – Diana, Beatriz, Estela e Marina – também integradas aos Montoneros, já haviam sido assassinadas, duas delas grávidas.
Sua esposa Elsa narrou assim a decisão do marido de passar à luta armada:
A certa altura, ele me disse que tomaria seu rumo, que iria trabalhar em outro lugar e que iria embora de casa por razões de segurança. Disse-lhe que fizesse o que lhe parecesse melhor. (…) Isto aconteceu em 1975, mais ou menos. Héctor me disse que queria transformar sua vida através de algo que nunca havia feito e que agora podia fazer. Não sei para onde foi, andava por Belgrano, certa vez me disseram que estava pelo Tigre. Muita gente que viajava no trem o tinha visto.