O Espaço Infinito
A Estrela da Ausência
Por Pedro Sales
Desde sempre as estrelas fascinaram os humanos. Olhar para o céu se tornou uma forma de se orientar temporalmente e espacialmente e, além disso, de se conectar com o metafísico. Não é por acaso que as mais diversas comunidades da Antiguidade desenvolveram estudos astronômicos, dos babilônios aos povos pré-colombianos. O fascínio, entretanto, permanece até hoje, seja no lançamento de um novo telescópio, como o James Webb, ou na descoberta de um novo planeta, o que sempre suscita a questão: “Será que estamos sozinhos no universo?”. A personagem principal de “O Espaço Infinito” é uma astrofísica cujo interesse na astronomia ultrapassa o profissional e se engendra em um âmbito pessoal. A abordagem do diretor Leo Bello constrói simbolicamente a (busca pela) estrela como um elo de conexão com o passado e a paternidade, neste drama psicológico em que a psique da protagonista é colapsada.
Em primeiro lugar, a direção já estabelece a temática em uma perspectiva intimista. Pai e filha olham o céu na noite estrelada. A pequena pensa ter visto uma estrela, mas na verdade se trata do planeta Júpiter, como corrige o homem. É evidente, portanto, que a gênese dos estudos no presente e a paixão pela astronomia surgiram em razão da conexão com o pai. Ou seja, as estrelas no longa se distanciam dos épicos interestelares de dominação espacial. É mais ou menos o que acontece em “Ad Astra”(2019), de James Gray, quando o espaço e a expedição em si servem como uma forma de se conectar com o pai. Aqui, Nina (Gabrielle Lopes) tenta se encontrar com o pai por meio da descoberta de uma estrela nunca antes mapeada, onde ele foi morar. As pesquisas, no entanto, levam a personagem a uma instabilidade emocional e psíquica maior, acarretando em surto e posterior internação em uma clínica psiquiátrica.
Neste sentido a astronomia adquire um papel secundário. O maior foco do longa, na realidade, é estabelecer o estudo de personagem de Nina e sua gradual quebra da sanidade. É interessante que Leo Bello não espetaculariza o surto para ser uma surpresa ao longo de “O Espaço Infinito“. O espectador já sabe dessa condição da protagonista, pois, logo nos minutos iniciais, ela está em uma maca, em estado catatônico devido aos medicamentos. A atuação de Gabrielle Lopes consegue, então, transitar do fanatismo da pesquisa e um certo deslumbramento ao identificar essa nova estrela para o colapso mental com um olhar perdido e impulsos autodestrutivos. Portanto, esta é uma obra que depende e funciona inteiramente em função de sua atriz e sua performance bastante física. Mesmo com esse claro destaque para Lopes, o resto do elenco também está bem. Wellington Abreu, que interpreta o parceiro de Nina, compartilha da fragilidade da protagonista e uma preocupação tangível quanto à perda da essência dela em razão da doença.
A fim de construir essa desorientação que acomete a personagem e transpô-la em tela, a montagem de Rafael Lobo e a fotografia de Pedro Maffei são primordiais. Existem aqui digressões temporais e uma alternância entre as etapas de estabilidade mental de Nina, repentinamente ela está sã e depois internada. A não linearidade, neste caso, é bem explorada, pois valoriza a já citada gradação da perda de sanidade. Junto disso, o uso do flashback se converte na extensão da mesma cena, quase uma sessão de psicanálise com revelações pontuais que, no terço final, adquirem um tom catártico e, obviamente, revelador. Se a montagem estabelecia a desorientação por meio da alternância entre cenas na clínica e no cotidiano da protagonista – na Universidade de Brasília ou em sua casa-mística com formato de gota -, a fotografia faz o mesmo ao transitar entre o realismo e o fantástico.
A câmera de Maffei, nestes dois “universos”, da sanidade e da “insanidade”, está sempre próxima da personagem. Opta-se quase sempre por closes do rosto sofrido e confuso de Nina, como se penetrasse no interior dela. Os planos mais enigmáticos e poéticos, por sua vez, retratam as variações e picos de humor com muito simbolismo nas imagens. As rosas representam o êxtase – mas sem a conotação sexual de “Beleza Americana” (1999) -, e fantasmas cobertos em cinzas e argila demonstram o tormento. Inclusive, quando eles tocam a personagem, a carga se assemelha um pouco ao terror de Polanski na cena do corredor de “Repulsa ao Sexo” (1965). Dessa forma, os planos mergulham em um evidente aspecto sensorial e emotivo. As cenas com a estrela brilhante na caverna, por exemplo, adquirem uma potência maior conforme o roteiro revela o cerne do surto da personagem. A dança com o fantasma também atua com o mesmo fim, representa quase as pazes com o passado. Apesar da clara força imagética, um dos destaques da obra, a conclusão do filme renega esse tom mais subjetivo em detrimento de uma escolha mais segura. O diretor propõe uma “cura” muito simplificada e repentina, a qual acontece pela medicação ou pela sessão de terapia alternativa? Não há respostas conclusivas, apenas a renovação e o fim da jornada de autoconhecimento de Nina.
“O Espaço Infinito” é uma obra que trata sensivelmente da saúde mental de uma mulher marcada por traumas do passado e questões paternas não resolvidas. A escolha da montagem por digressões temporais contribui e enaltece ainda mais o trabalho da atriz, uma vez que a temporalidade proposta valoriza a amplitude dramática da performance de Gabrielle Lopes, as variações mentais e o mergulho na psique de Nina. O filme de Leo Bello, por meio da clara fotogenia dos seus planos muito bem decupados e compostos, ultrapassa a preocupação estética. Até as imagens que tendem mais ao abstrato e fantástico estão subordinadas à tensão emocional da personagem e ao páthos do filme. Portanto, o longa cria cenas repletas de significados e ressignificações. Ao abraçar essa estrela da ausência na escuridão, a protagonista se liga ao pai e quando ela boia no final, agora com a estrela no peito, ela finalmente parece estar pronta para escrever novos capítulos de sua história, ao lado de seu parceiro e de seu filho Noé.