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Nocturno 29

A bandeira é nossa!

Por Giulia Dela Pace

Festival de Cannes 1968

Nocturno 29

Profundamente envolvido com a política espanhola, e senador eleito nas primeiras eleições democráticas após a morte de Franco, Pere Portabella é um dos grandes cineastas espanhóis. Em “Nocturno 29” seu drama político com inúmeros traços e, para dizer mais, fortes pegadas surrealistas de 1968. Inegavelmente, o estilo deste filme, assim como o de outras obras do cineasta, é o experimental que busca – no momento de sua produção, década de 1960 – novas formas de se realizar a linguagem cinematográfica e explorá-la a um nível poético. Tal como fizeram grandes nomes do cinema mundial, especialmente Glauber Rocha no Brasil, com seus transes, seus silêncios prolongados e seus gritos tão naturalmente desesperados por justiça.

Para aproveitar o assunto, “Nocturno 29” carrega, entre muitas coisas excepcionais, a energia e o ritmo de muitos filmes nacionais durante a ditadura militar brasileira. Como em “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” temos a fome, a miséria e a dor da secura no sertão comandada pela cegueira de um coronel que encarna um capitalismo sem pudor, mas que não é narrada pelos personagens, mas sentida e transposta aos espectadores de forma quase tátil, temos no longa de Pere Portabella um silêncio mortal e inconformado. Um silêncio que nos faz querer mover o corpo a todo momento na cadeira incomodados pelas sensações dos personagens em seus ambientes comuns e avessos.

E essa é talvez uma das características mais importantes que a arte surrealista e dadaísta tem em comum como produtos que também comunicam ao espectador: o incômodo. Tendo em vista, que não são apenas movimentos de quebra por libertação de rigorosidades de técnica da arte, mas de libertação para romper, quebrar e gerar desconforto naquilo que se vê. Tanto os momentos em que as escolas artísticas surgiram, quanto nos momentos em que esse cinema latino\latinoamericano se encontraram, havia motivo para despertar e exacerbar esses desconcertos sociais e políticos.

Sem falar do poder da fotografia, iluminação e desfoques que delimitam o que pode ou não ser visto e o que incomoda sem nitidez. Mesmo a atuação do filme, embora genial, persegue o espectador com sentimentos de angústia muito densos e avessos, ainda mais durante os passeios de câmeras. Nada em “Nocturno 29” falha, especialmente por sua montagem impecável.

Apesar da protagonista ser uma mulher clássica de filmes dessa década, pois, geralmente, calada faz “caras e bocas” com um olhar tão agudamente mergulhado em seus múltiplos e profundos pensamentos, assim, ela não consegue dizer muito. Há críticas, e muito bem embasadas de Estudos Feministas do cinema sobre esse “arquétipo”, claro. Mas não há descrição melhor do que seria a mulher burguesa europeia intelectualizada dos anos mil novecentos e sessenta, o que também reflete na classe intelectual burguesa brasileira, como as tantas que funcionam como a Rosa de Glauber e Annas de Godard: calada, pensativa e melancólica. A perfeita “Barbie” simbologia da impotência sobre a sua própria realidade, apesar de ser um olhar um tanto contemporâneo sobre as personagens, coisa que poderia simplesmente não constar na sua origem, mas que fazem sentido e amadureceram para esse olhar atualmente.

E mais do que um drama, é um filme de terror, pois o que assusta é a primeira metade do longa. Com sensações terrivelmente quebradas, não satisfatórias, de desconforto com as imagens e com o cenário político, de incômodo com a televisão ou com um vidro do banheiro que distorce, repuxa e desconfigura uma realidade tão natural e comum como um corpo nu.

Portanto, esse thriller político, sobre ser o terror psicológico de uma ditadura que afeta não somente os personagens, mas todos os espectadores ao se depararem com situações burguesas monótonas, com a ira sobre o sistema inertes, com as frustrações sobre tirania ou sobre a busca por liberdade, e novamente, o amor à bandeira. Uma cena tão intensa quanto a que a protagonista alisa a bandeira da Espanha em busca de um conforto que já não existe mais naquelas cores e naquelas formas. É uma cena de pesar o coração de qualquer brasileiro num presente tão pós autocrático como o vivido neste momento.

Assim, o terror é o que se viveu nas tiranias latino-americanas ou com Franco, para nem citar Salazar. Terror não é apenas a jump scare safada ou o fantasminha no canto no quarto de uma criança branca de camisola, embora esse derretimento mental seja bom vez ou outra, terror\horror é o que se vive diariamente no Brasil e o que se pode sentir ao pensar sobre a decadência de um mundo capitalista. Isso sim é aterrorizante e de deixar a barriga mais embrulhada que um gore pesado.

5 Nota do Crítico 5 1

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