Megalópolis
A tradução caótica dos colapsos de um novo mundo
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival de Cannes 2024
Projetos sociais costumam atravessar as barreiras da psicanálise, racional mais pragmática, porque há um elemento de contraste paradoxal, quase de interna invisibilidade inexplicável, que existe entre o querer subjetivo em traduzir ideias (a paixão genuína e incondicional) ao concreto e a missão de ser bem sucedido no resultado final (a “entrega” do material para “ser julgado”). Essa linha divisória, tênue e transcendente, de ordem suspensa da própria realidade, de paralelismo conflituoso advindo de uma maior vulnerabilidade da criação, altera todo o discernimento entre o bom e o mau, como se fosse um véu protetor que impede a lógica do auto-questionamento. No cinema, parece que esse conflito fica mais evidente, explícito, transparente e verdadeiro, especialmente para o veterano realizador Francis Ford Coppola, que depois de clássicos icônicos, que incluem “O Poderoso Chefão” e “Apocalypse Now”, resolveu colocar em tela grande o “projeto” de sua vida, iniciado em 1982 e que durou mais de quarenta anos para ser finalizado. Exibido aqui na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, “Megalópolis” apresenta-se como o simbolismo de seu título, um épico metafísico que atravessa tempos e lógicas universais. Uma ficção-científica de distopia futurista sobre a ideia radical de formulação construtiva de um nova cidade.
“Megalópolis” é um conceito. Um estudo-teste de tradução às imagens de uma utopia brainstorming. É também um produto pessoal (tanto que Coppola vendeu sua vinícola para financiar o projeto), atravessado por anos de referências e conhecimentos adquiridos de seu criador. Sim, é impossível, assim mesmo como um determinismo inevitável, que haja uma separação mais distanciada da construção da obra, pela característica essencial e dominante deste filme ser intrinsecamente autora, corroborado no tom mais literal da ideia. Mas os tempos mudaram. E não é só uma metáfora consequente da trama ficcional de “Megalópolis”. Cada vez esses artistas, dentro da estética do cinema-autor, enfrentam limitações, novos propósitos retro-alimentados e cansaços “de se bater na mesma tecla”. Isso é explicado pela ação mais ofensiva e dominadora dos grandes estúdios, que agora tentam adequar as obras às tentativas de acertar o que o público espera de um filme. Se antes, o tempo servia para buscar a máxima perfeição criativa de uma obra, neste momento então é a pressa do lançamento que dita o novo presente em que estamos. Quer-se nesta contemporaneidade “simplificar” o complexo, facilitar o processo e apressar o elemento artístico quando padrões de reações do público são analisados (buscando inclusive estruturas semelhantes de outros filmes que não “podem mais” causar dúvidas e conflitos mais aprofundados da audiência). Pois é, tudo isso é produzido na superfície, na aparência, na embalagem, numa inteligência artificial de automação mais robótica, menos humanizado, menos perspicaz, menos sutil. A impressão que temos é que vivemos em uma era da praticidade superficial, de atendimento casual, entre uma pipoca e outra.
“Megalópolis” tenta trazer uma discussão político-social, de micros embasados para compreender melhor os macros. De importação evocada (e comparada) de uma Roma antiga à atual, por exemplo. Contudo, vamos lá, a forma de sua narrativa, como já disse no parágrafo anterior, desenvolve-se pelo raso e pelo arquétipo mais estereotipado desse cotidiano apresentado. Suas personagem ditam suas existências ficcionais pela encenação mais teatralizada e mais anti-naturalista, em diálogos expositivos, didáticos e desacreditados de verdade. Talvez o ritmo dessa narrativa, de cortes rápidos e fragmentados (com mais cara de um seriado da Netflix) nos ajude a compreender esses incômodos e esses “entre” contrastes. Um deles é porque “Megalópolis” também quer acontecer pela estética técnica da imagem e principalmente por sua fotografia que simula a projeção poética à luz do sol; e pela movimentação do tempo em metafísica, que suspende a realidade da lógica humana, criando possibilidades de parar literalmente o exato instante em que está na vida. Será essa personagem daqui um super-herói? Um mutante? Uma alusão ao alienígena-imigrante? Uma representação figurativa personificada de Deus, o “arquiteto do Universo”?
“Megalópolis” é para ser encarado acima de tudo como uma fábula modernizada-futurista. Um realismo fantástico. Um argumento teoria que permite “viajar” nas suposições de que o “morrer agora é televisionado” e um espetáculo-entretenimento. O longa-metragem quer potencializar a definição dos tipos indivíduo-comportamentais por status sociais, encenando, como reconstituições da vida, uma pseudo-naturalidade: os fluídos corporais e os “livres” beijos lésbicos. Mas quando “Megalópolis” permite (quase como novo propósito de condução da trama) o próprio caos, tudo vira uma bagunça com informações demais, liberdades poéticas demais. São “colapsos” demais em discursos nada convincentes (pululados de explicações sobre temas técnico-científicos) à procura da cumplicidade nivelada por baixo do público. É Adam Driver está desgovernado. “Megalópolis” nos causa um desconforto estranho, a mesma sensação que senti em “Annette”, em “Oppenheimer” e um pouco em “Babilônia“: a de estar perdendo tempo sentado na cadeira do cinema. Sim, essa é a pior impressão que se pode ter sobre uma obra, e ainda que eu nunca tenha abandonado uma sessão, até porque sempre espero algo de todo e qualquer filme, mesmo assim vem esse sentimento de inutilidade, de que nós espectadores precisamos ser coniventes e abaixar nossos níveis intelectuais (visto também que tudo aqui é repetido em ciclos).
“Megalopolis” é um filme de gênero. Uma obra que busca alterar nossas percepções sinapses com as leis ininteligíveis da física quântica, entre “jazz desconstruído”; entre transformers; entre a figura da pessoa amada que estimula o impossível, entre uma monarquia mais sensacionalista, tudo soa a estrutura de uma novela-circo “carnavalesca” de núcleos “desfilados na avenida”. “E se Roma fosse agora”, sim, já entendemos. Sim, é bobo, ingênuo, amador e que apela inclusive para a performance de números musicais (olha “Annette” aí de novo!). “Artistas nunca perdem o controle do tempo”. Oi? Ok. E sim, “Megalopolis” é também um filme interativo. A luz acende, alguém vem da plateia e faz uma pergunta à tela. E assim, após tudo, o longa-metragem não para mesmo: quer incluir mais elementos que choquem e que simulem a naturalidade libertária do cotidiano: telas divididas, cenas explícitas, melodramas, stories. É, esse futuro pós apocalipse de Francis Ford Coppola já nasceu datado, e nós espectadores, infelizmente, torcemos pelo fim do mundo para nos livrar e nos salvar de toda essa tortura criativa.