Mais Pesado é o Céu
Tudo para estar vivo
Por Pedro Sales
Festival de Gramado 2023
Duas pessoas. Um homem e uma mulher. Cada qual com seus próprios caminhos e sonhos de fugir da miséria na esperança de encontrar um lugar melhor, a capital ou outro município próspero. Na jornada individual, os caminhos se cruzam e, juntos, compartilham pouco, apenas a falta do básico, as memórias da velha cidade e uma dor pontuada nesta terra de ninguém. O caráter desolador de “Mais Pesado É o Céu” evoca uma parte esquecida do país, o tão famigerado Brasil Profundo. O diretor Petrus Cariry, neste sentido, utiliza dessa geografia que mescla beleza e dureza para dar o tom emocional aos seus personagens. Existe, portanto, algo de delicado nesta reunião dele e dela, mas que lida diretamente com o duro ímpeto da sobrevivência. Uma vida árida, ou seca, para referir ao livro de Graciliano Ramos, ainda que imersa na força de resistir e dar chance ao outro viver.
Antônio (Matheus Nachtergaele) pega uma carona no caminhão, paga como pode, presta um serviço braçal de limpeza na carroceria em que animais são carregados. O plano maior é chegar até Parnaíba, onde um conhecido bamburrou com esquema de pesca de caranguejos no mangue. Teresa (Ana Luiza Rios) também repete a dose. Pega um caminhão e planeja chegar até Fortaleza, onde crê que sua sorte pode mudar e finalmente recomeçar. Antes de chegarem aos seus respectivos destinos, ficam na velha Jaguaribara, antiga cidade hoje submersa, mas onde ambos já viveram. Na beira do açude-cidade, Teresa encontra um bebê, tal qual Moisés – em vez de um cesto, um barco na margem -, e o toma como seu. Até que os caminhos de Antônio e Teresa se cruzam e os dois passam a viver juntos como uma família, com pouco espaço para sonhos, relações, uma vez que o mais urgente no momento é sobreviver e amparar a criança.
O que inicialmente parece um filme de estrada (road movie) logo se revela um filme “no meio do caminho”, uma vez que os personagens passam a maior parte da rodagem assentados na cidadezinha e não atravessando o país pelas rodovias. E é neste município pequeno onde Antônio e Teresa encaram a realidade. Os planos gerais de “Mais Pesado é o Céu” expõem o céu resplandecente, o açude cheio, mas contrasta esta paisagem com a vegetação seca da caatinga. As internas não são mais convidativas do que a paisagem natural. Vivendo no limite, os dois e a criança só têm um teto simples. Existe, então, uma esvaziação cênica com intuito de reforçar essa pobreza. O uso da luz também reforça isso, sobretudo com composições que exploram sombras e utilizam do chiaroscuro. Neste sentido, lembra formalmente “Vitalina Varela” (2019), de Pedro Costa, nas internas desoladoras. Se no filme português essa abordagem é uma representação da emoção da personagem no luto mal resolvido, aqui é a constatação da falta.
Petrus Cariry examina relações forjadas com intuito da sobrevivência. Uma “família” formada para fugir da miséria, uma espécie de “Dheepan” semiárido. O diretor retoma a análise social observada em “O Grão” (2007), mas com uma carga dramática mais pontuada. O voyeurismo que se revela como fonte de renda e o gradual relacionamento dos protagonistas são encenado com suspense, a prostituição, com o devido peso de vender o corpo por tão pouco, para se manter viva. Não são ao acaso possíveis comparações com “O Céu de Suely” (2006), de Karim Aïnouz, onde a protagonista também encontra este meio para recomeçar. Alguns planos em contraluz na estrada, o referenciam de forma ainda mais direta. Portanto, o cineasta evoca uma questão política em meio a isso: a prostituição como alternativa ao emprego que paga R$ 300 por mês, a conivência de Antônio. É estar ao limite da existência. É explorar da dor do outro sem peso na consciência. “O que a gente fez da gente?”, questiona o personagem ao final.
É simbólico ainda que “Mais Pesado É o Céu” proponha um encerramento catártico que traz à luz a questão de classe e a violência como meio de emancipação. O carro, obviamente, é uma Hilux, pois sintetiza esse poderio econômico em relação àqueles que mal têm o que comer. A mise-en-scène de Cariry prefere antecipar ao espectador o que pode ser, o plano-detalhe da chave, e manter certa suspensão ao utilizar o fora do campo e a câmera na mão. Matheus Nachtergaele e Ana Luiza Rios dão vida a pessoas tão fragilizadas, com dores próprias, e que ao acaso se juntam para tentar não transmitir o mesmo legado de miséria a quem ainda nem sabe o que é isso, apesar de viver com ele todos os dias. É um cinema franco com as questões sociais que aborda, com o Brasil Profundo que, mesmo ficcionalmente, denuncia e com o espectador, que experimenta das agruras de uma vida mínima em que tudo é válido para estar vivo.