O Céu de Suely
O limite orgânico do sim
Por Fabricio Duque
Poucos diretores conseguem traduzir de forma tão eficaz a essência comportamental da vida e repetir a façanha de sucesso do primeiro filme. O argelino-brasileiro Karim Aïnouz é um deles. Após de estrear com maestria e em grande estilo com “Madame Satã”, seu longa-metragem seguinte, “O Céu de Suely” adentrou a seara de naturalizar a já então espontânea existência. É uma obra que pulula e pulsa o popular (respeitando os costumes típicos) com o controle absoluto da direção. Assim, o espectador é imerso em uma ambientação sensorial, de sinestesia que adiciona verdade à experiência, de poesia coloquial que dança no tempo único de suas personagens.
“O Céu de Suely” é um filme sobre a inquietação do ser humano. De não se deixar pausar o tempo. De acreditar que algum futuro ainda é possível. De lidar com o que se tem na mão. De sobreviver com todas as “armas” que se possui. Sim, este longa-metragem é uma ode à vida e principalmente à manter a mente em paz do próprio eu. É ser resiliente e forte com as adversidades. De “dançar na chuva quando a chuva vem”, já cantou Marcelo Jeneci na música “Felicidade” no álbum “Feito pra acabar”. Segundo sim. Nós somos envolvidos na simplicidade pragmática da filosofia popular, que vive por instantes. Por momentos felizes. Que tudo pode acabar da “noite pro dia”.
O filme nos conduz por uma nostalgia de tempo parado, que contempla, mas também causa aflição. Como se algo iminente fosse acontecer. É a tensão real da próprio caminho de todo e qualquer ser enquanto vulneráveis indivíduos sociais que moram na periferia interiorana do Brasil (só paisagem, mato e estrada). Terceiro sim. Eles acostumaram-se à falta do pensar complexo. De ouvir música brega, de nortear seus dramas mundanos. De se proteger da universalidade dos sentimentos. Todos ali sentem ciúmes, desejos, impulsos, defesas, medos e “felicidade extasiante” (a mesma passional, pungente e dilacerante de “Madame Satã”), que rasga o peito.
“O Céu de Suely” é também sobre a invenção de um céu possível. Uma projeção de salvação, de se “tirar daquele lugar”, que encontra abrigo e metáfora na trilha sonora romântica popular, com seus com ingenuidade hiperbólica e seus exageros dramáticos, quase com um que de imaturidade adolescente, canta sentimentos sem máscaras e proteções. A narrativa constrói-se pela linguagem, de poesia sensível, naturalista, espirituosa e de organicidade do sentir, transmitir e absorver. “Casar ou morrer afogado”, diz-se fazendo com que nós fiquemos fraquinhos com tanta liberdade traduzida.
Muito se deve ao roteiro e logicamente a seus roteiristas Simone Lima, Mauricio Zacharias (de filmes do Ira Sachs) e Felipe Bragança (que também assume a Assistência de Direção); à irretocável, intimista e majestosa direção de fotografia de Walter Carvalho (com assistência de Heloísa Passos); à preparação da sempre controversa e “violenta” Fátima Toledo (que leva às últimas consequências o conceito do Método, o ator se tornar de forma real o próprio personagem), que tonifica o elenco impecável, entregue e de nomes talentosos. Quarto sim. Pois é, uma união, rítmica e cadenciada de muitas mãos em prol do amor-competência pelo cinema, que mesmo que quisesse não poderia dar errada.
“O Céu de Suely” é um road-movie existencial à moda de “Central do Brasil” (de Walter Salles – aqui também um dos produtores) com “Bagdad Café” (de Percy Adlon). Sobre uma jornada de passagem. Que foi por causa de sentir a “maior paixão do mundo”. Que volta porque precisa (com um “presente” filho nos braços, que “todo dia chora até dormir”), para no posto de gasolina (que estava R$ 2,38 na época), fica um tempo (aproveitando o ambiente familiar e zerando a saudade com visita), recupera o cansaço do caminho, rifa uísque e intensifica o querer do continuar para o “lugar mais longe e/ou do antes um pouco”. Mas para isso acontecer, a moralidade social precisa dar lugar à praticidade de uma decisão. De se rifar e se vender para ganhar a liberdade de um “porto alegre”. Ainda que momentânea a fim de não ter os sonhos polidos no meio aprisionados.
Hermila (o mesmo nome de sua atriz Hermila Guedes) não é dali. É apenas uma estrangeira por oportunidade com “cabelo com a moda de lá de São Paulo”. Quinto sim. Há quem diga que quem conheceu a cidade grande não volta à “pequena”. Ela é vista e se comporta como uma visitante. Como uma intrusa fora de tom, tempo e espaço, que revive pessoas e amores, enquanto seu marido não chega para abrir uma banca ao trazer uma “copiadora de cd”. Mas a projeção da felicidade ganha realidade rápida demais. O cotidiano apresenta-se com força nua e crua. A mudança então é urgente, embalada por uma melodia lúdica que lembra a de uma caixinha de música. O marido “sacana” “rouba seu coração” e seu futuro também. Novas partas são abertas. O ex a “segue só um pouquinho”, em flerte fofo e direto para “subir com ele” (a sensação boa de paz e calma no caos). “Estranha, mas bonitinha com esse cabelo”, diz. Sexto sim.
Tudo é uma composição de instantes ultra espontâneos, com suas diversões, cervejas, cigarros, conversas e sexo. “O Céu de Suely” é sobre bagunçar a calma de uma cidade. Confrontar, transgredir e lutar contra preconceitos enrustidos e velados e a favor do existir feminino (que escolta o carro do “vencedor sortudo”. Mas tudo vale para sair dali e não mais conviver com a melancolia resignada. Já foi dito que os “fins justificam os meios”. Último sim. O filme é o que podemos chamar de masterpiece. Uma obra-de arte já nasceu clássica, eterna, obrigatória.