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Late Night

Nos Bastidores da Piada

Por Jorge Cruz

Late Night

Se tem um procedimento que o cinema dos Estados Unidos realiza com excelência é monitorar as vozes e discursos fortalecidos na sociedade e elevá-los à condição de argumentos de bons roteiros de seus filmes. Em uma época onde projetos médios de grandes estúdios se confundem com a ala independente, obras como “Late Night” transitaria entre o circuito alternativo dos bairros de classe alta e a opção menos óbvia e mais indie para aqueles que desejam fugir da explosão de pipoca e juventude dos shoppings. Só que no meio do caminho da mutação que a distribuição de conteúdo audiovisual, há o streaming. No caso desse filme, a Amazon Studios não se preocupa com o lucro, que é antecipado, o que possibilita a Mindy Kailing entregar um roteiro que provoca uma joie de vivre ao mesmo tempo em que transita por questões de gênero que acertadamente pautam a sociedade.

Kailing, no papel de Molly, nos traz um pouco de sua experiência pessoal como roteirista de comédia. Com 40 anos de idade, ela foi adicionando de forma cadenciada (para não dizer lentamente) trabalhos na função. “The Office” e “Mindy Project” foram sucesso de público e crítica, mas nunca renderam um troféu à autora, nem mesmo a elevou ao status de grande comediante. Talvez por isso ela construa uma Katherine Newbury (Emma Thompson, também divina em “Um Ato de Esperança) multicampeã de Emmys Golden Globe Awards. O texto já mostra sua força ao inserir camadas na veterana apresentadora de talk-show logo de início. Katherine tenta distribuir lições de empoderamento ao mesmo tempo que aceita e reproduz o mesmo machismo institucionalizado de quem está ao seu lado. Sua autoconfiança como resultado de décadas de sucesso não a deixam enxergar isso, o que faz com que ela pratique certa vingança, porém escolhendo os alvos errados.

Até que ela se depara com uma equipe de produção constituída em sua integralidade por homens brancos. Não há como imaginar que muitas cenas de “Late Night” de fato foram vividas pela roteirista. Mindy esbanja talento nesses momentos, como na cena em que ela descobre que o banheiro feminino é utilizado para o “número dois” dos escritores, já que nenhuma mulher trabalha(va) ali. A direção de Nisha Ganatra é generosa para com a performance das duas atrizes. Por sinal, fica a torcida para que seu bom trabalho se reverta em novos projetos. Mesmo formada pela prestigiosa New York University, ela nunca emplacou um longa-metragem desde uma produção pequena quando tinha 25 anos de idade. Essa ocupação de espaço, tanto dentro quanto fora da tela, é trabalhada a todo instante. A comédia stand up, por sinal, é uma zona de conflito que o filme trata muito bem. A mesma Netflix que ganha as manchetes em 2018 com o sucesso de “Nanette“, de Hannah Gadsby, se enche de orgulho ao anunciar a inclusão de filmes de Danilo Gentilli em seu catálogo. É a prova de que tal veículo se vale para todo o tipo de criação.

Nesse cabo de guerra entre o humor representativo e a mera humilhação, a branquitude de Katherine é outra questão bem formatada pelo roteiro. Talvez as falas e os discursos sem floreios afastem quem evite um material mais panfletário. Porém, o equilíbrio de ações em “Late Night” é notável, tal qual ocorreu em “Infiltrado na Klan“. Interessante observar como os homens do elenco transitam pela órbita de Molly usando todas as táticas que lhe são permitidas. A chegada da mulher indiana no espaço deles provoca desde agressividade até o galanteio sem objetividade, mas quase sempre fundados na discriminação. Só que ao lado do talento da aspirante a comediante há o profissionalismo e a disciplina de quem está no real mercado de trabalho. O fato da personagem ter outro emprego – sendo bem sucedida na empresa – inaugura um outro debate: a da crise existencial de quem trabalha com televisão, seja no jornalismo, seja no entretenimento. A obrigatoriedade de se expor mais provocada pelas novas mídias e redes sociais atinge em cheio Newbury.

Há momentos grandiosos em “Late Night”, quase todos provocados pela sintonia entre Emma Thompson e Mindy Kailing. Porém, se há um destaque maior a ser apontado no trabalho da primeira, esse se dá exatamente no meio do filme. Um ponto de virada na cena de um stand up de abertura de episódio tão bem escrito quanto interpretado. O roteiro explora muito bem essa possibilidade, de usar apresentações como importantes monólogos. Até aquele momento a trama do longa-metragem era um pouco sisuda, baseando seu humor na personalidade de Katherine parecida com a Miranda Priestly que Meryl Streep consagrou em “O Diabo Veste Prada“. Todavia, quando o entendimento sobre o que se passa atinge aquela mulher, o filme desanda em um crescimento que o torna cada vez mais engraçado e prazeroso de se assistir.

Nesse equilíbrio incrível de ações, o longa-metragem é tão regular que é aceitável que alguns entendam ser ele quase genérico. Por óbvio, fechar os olhos para as questões de raça e gênero ali demonstrados deve criar um esvaziamento da obra. Gostar de “Late Night” depende muito do envolvimento e da pessoal visão de mundo, já que estamos diante de uma obra prioritariamente comportamental. Pessoalmente, entendemos por uma grandeza desse produto baseada na representatividade, aliada ao excelente uso do universo televisivo que nos remete diretamente ao (agora) clássico “Nos Bastidores da Notícia” – dirigido e roteirizado por homens e detentor de seis indicações ao Oscar de 1988.

Com isso, o texto de Kailing pode ser bem mais direto do que o padrão de filmes dos Estados Unidos, mesmo aqueles com selo de independente. Ao ultrapassar essa fase das intenções, a indústria vai tentando direcionar seu discurso,trabalhando para que o movimento Time’s Up se revele, de fato, frutífero. Resta saber se a forma de se fazer cinema como “Late Night” se propõe será finalmente naturalizada ou daqui a duas ou três décadas se mostrará necessária a contextualização de grandes filmes como ele, “A Esposa” e “Poderia me Perdoar?“. A Academia tem a chance de ser menos injusta no Oscar desse ano, reconhecendo a magnitude das duas atrizes e do roteiro. Pois então, daqui a algumas semanas saberemos os caminhos que Hollywood tomará.

 

4 Nota do Crítico 5 1

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