Honey Boy
A ficção orgânica de uma vida
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2019
Não, não é fácil ficcionar a própria vida. Ainda que a coragem aconteça na hora de se criar o roteiro, os limites defensivos da memória estarão lá. Presentes como subterfúgios da negação que transformam as sensações do passado em meras fantasias de uma epifania projetada.
O autor, acreditando que o processo servirá como uma catarse para expurgar seus demônios, liberta-se da distância da criação para embarcar em uma jornada de auto-piedade e de vitimismo justificado. É uma experiência particular e altamente pessoal, que explica seu subjetivo pelo que foi vivido. Nós, de fora, apenas observamos passivamente e com sinestesia os dramas transpostos, respeitando a quarta parede teatral.
E isso é exatamente o que acontece com “Honey Boy”, uma terapia de auto-reflexão rememorada sobre a vida do ator Shia LaBeouf, que ainda que tenha escolhido participar da saga “Transformers”, preferiu desconstruir a carreira com papéis mais desafiadores, por exemplo, a entrega total em “Ninfomaníaca”, de Lars von Trier, saindo assim do senso comum e “explodindo” a zona de conforto.
Realizado pela israelense Alma Har’el (do documentário “Bombay Beach”), estreante na direção de um longa-metragem de ficção, “Honey Boy” busca a sinestesia imersiva do espectador, estimulada por um cotidiano realista, que confunde emoção naturalista com limites sociais, tudo envolto em uma atmosfera de lembranças lúdicas, que se “defendem” da revisitação do sofrimento, cria-se então uma suavizada capa protetora.
Shia, que aqui se torna a personagem Otis, representa todas as crianças que crescem em frente às câmeras, atuando como profissão e sustento a seus pais. Quem não lembra da história do astro mirim Macaulay Culkin, do clássico “Esqueceram de Mim”? E/ou de Michael Jackson? São vidas que transcendem a própria existência, necessitando antecipar a fase adulta por dom ou “carma” imposto.
Otis quando atua vive na fantasia. Fora do mundo espelhado e “invertido” da imaginação, adentra na dureza da regras ditatoriais da família (sem tempo para brincar e aproveitar a infância – são horários de Set e gravações), principalmente as de seu pai, uma figura “desgraçada” repulsiva (que é vivido pelo próprio Shia como James Lort). Sim, uma tragédia grega Shakespeariana-freudiana.
Mas não se sabe se por Síndrome de Estocolmo nosso protagonista, motivado à moda do “cruel” professor Terence de “Whiplash: Em Busca da Perfeição”, de Damien Chazelle, cruza a barreira e apresenta aqui uma homenagem de amor mais que ódio (pelas grossas e diretas discussões-surtos “barraqueiras” contra “amigos galinhas”), embasando que se não fosse a rigidez, talvez o autor-vítima talvez tivesse desistido no meio do caminho (se seguisse os conselhos de sua mãe). Seu pai age assim para que seu filho encontre o sucesso, final feliz que o pai fracassado nunca chegou. Em um submundo traduzido da vida como ela realmente é. “O amor vende fraldas no mundo real”, diz-se.
Sim, “Honey Boy” é uma história de amor co-dependente, de retroalimentação emocional. Uma jornada de crescimento em que a vida é interceptada sem freios pela arte. Otis aprende a verdadeira essência de um ator (“desgatar, julgar” e lidar com “frustrações”): não só interpretar, mas ser os outros na plenitude de seus orgânicos, humanos e errantes comportamentos em uma 1995 sem glamour, bem à moda de “Projeto Flórida”, de Sean Baker, complementado nas ideias de “Docinho da América”, de Andrea Arnold, que Shia também participa como ator. E depois em 2005.
Há também um que bem distante de “Um Lugar Qualquer”, de Sofia Coppola. Nós espectadores somos conduzidos pela intercalação de digressões e sonhos, que explicam e indicam causas dos problemas do futuro (resquícios da criação de “mulheres de qualidade precisam ser igual Dolly Parton): a dependência das drogas e do álcool (repetindo padrões recebidos – a “herança”), ansiedade incontrolável, a descoberta da sexualidade com uma prostituta e a “intimação” de se meter na briga dos pais (interpretando com ar cômico a profundidade do drama – esta cena causa mais desconforto que se fosse um drama sentimental).
Apesar de todo liberalismo sentimental dos abusos a uma criança vulnerável de doze anos (sem maturidade suficiente e sem chance de emancipação), há no filme uma veia americana de ser. Então, certos gatilhos comuns precisam de corroboração conservadora: a redenção pelos valores morais da família. Atuar para Otis não é mais trabalho, seu “ganha pão a vida inteira”. E nossa imersão só cresce quando os efeitos sonoros (foley) rasgam as cenas nos transportando à criação do sensorial e do etéreo, como uma epifania.
“Honey Boy” é sobre a “verdade podre” dos “pais mercenários”. “Faça suas histórias”, ensina-se com tom auto-ajuda contra trangressões e ilegalidades, mas artifício é necessário e altamente compreensível se entendermos que o autor-personagem já se desnudou demais e expos sem vaidades todas as angústias de sua existência, que é embalada por músicas de Bob Dylan para com nostalgia resgatar a resiliência (de um utópico mundo ideal) de se continuar a “estrada” da vida.