Fico te devendo uma carta sobre o Brasil
Padronização histórica
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
É curioso ver que o monopólio do capital intelectual acabe levando a elite ao protagonismo da História. A burguesia mantém sua estrutura de poder, através da comunicação, onde centraliza o período de 64-85 aos esforços individuais de cada um. Mas aqui, “Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil” de Carol Benjamin é um tratado pessoal em torno da dimensão histórica que é a ditadura. Diferentemente de “Democracia em Vertigem” que o olhar busca totalizar a realidade brasileira em torno do pensamento da classe burguesa “progressista”, iludida, derrotista, tacanha e miseravelmente intelectualizada pelos vulgares do marxismo, o filme de Carol torna a subjetividade parte desse “filme-processo” de compreensão de um momento histórico.
É uma mão dupla. Ao passo que quer falar de sua família, quer retratar parte da realidade brasileira em momento histórico específico. O tom dúbio normalmente enverga ao lado da individualidade, por sorte, ou melhor, por classe, as figuras em questão estavam no holofote, na mídia. E aqui retorno a crítica de como parte dos documentários brasileiros se recusam ao materialismo, ainda que sejam projetos por progressistas. São múltiplas especulações possíveis, mas o conservadorismo ideológico da manutenção social é sua maior possibilidade. Há limites que a burguesia não rompe. Não é muito difícil enxergar as vertentes aqui presentes. Leandra Leal e João Moreira Salles estão envolvidos na produção. O espírito zonasulesco domina grande parte de sua abordagem. Agora, isso fortalece parte dos vínculos mais imediatos com a temática sentimental inerente ao projeto, por outro lado, torna (a)crítico o processo de feitura da obra. Novamente, mão dupla. E é sempre nessa dualidade que a burguesia joga. Lembre-se, há limites.
Está claro que as admiráveis figuras que são apresentadas no documentário vão saltando à tela e passamos a conhecer suas intimidades que os documentos não nos mostram. Mas parte dos dispositivos utilizados aqui, podem ser discutidos. Há um processo que denuncia uma das motivações de distanciamento de um ato de debruçar-se sobre a matéria, visto que parte dessa documentação e arquivo surgem nos primeiros minutos, vindos da Suécia. Nesse decorrer, algumas cartas são lidas, algumas em inglês. Me pergunto, como em “Deslembro” a necessidade de curvar-se à língua estrangeira sempre como recurso internacionalizante. No caso de Flávia, era uma vivência, aqui é a língua em que a carta está escrita. Se o cinema é a arte dos analfabetos e estamos falando sobre Brasil, em ambos os casos, por que a recorrência dessa envergadura à multiplicidade linguística? Caso o longa escolhesse o caminho da tradução, haveria uma acessibilidade maior. Ou não?
Mais um ponto pode ser colocado em cheque, há uma formalização do padrão de documentário. O espectador escuta aquela voz em off, com planos “poéticos”, a fala mansa, planos íntimos, o frame modificado (em determinados momentos). É uma espécie de ensaio pessoal em torno da memória familiar durante o período da ditadura. E funciona como tal, ainda que possa afastar parte dos espectadores, pelo ritmo lento (já comum nessas produções que visam a construção intelectual das percepções de mundo). E este é um problema que é exterior à “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”, que apenas segue a cartilha à risca. É, como dito anteriormente, um problema cultural, de classes, que pode ser analisado através do materialismo dialético, ainda que como autocrítica, afinal não é essa uma parte do trabalho de João Moreira Salles em suas últimas obras? Um olhar que reconhece em si, limitações da compreensão da realidade brasileira, por seu lugar nela. Escrevemos críticas, devendo o banco que seu pai fundou.
E é em torno da abordagem de como essas produções brasileiras vem focando nessa subjetividade formal, onde o tom progressista é sempre dado pela metade, pois há o medo do campo intelectual se curvar. A ingenuidade é tamanha, a burguesia não é indispensável, apenas deve ser feita a concessão. Por fim, o filme de Carol Benjamin é hábil em ordenar seus materiais de arquivo de maneira a compreender as dimensões de seus personagens, mas acaba caindo no lugar comum da linguagem e possui o mesmo problema de acessibilidade de grande parte dos longas que miram a temática da ditadura. Como Murat, Flávia etc, o debate é na Zona Sul, mas o assunto é o Brasil e a História. E ainda que Iramaya Benjamin e seus filhos sejam figuras importantíssimas, a impressão é exterior à essa centralização. Nem indivíduo, nem comunhão, classe.