Deslembro
Contemplar a memória entre o rock e o samba versus Ao som de ele não, francês não
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2018
Debates entre Críticos: Maestria versus Covardia
Contemplar a memória entre o rock e o samba
Por Fabricio Duque
A palavra deslembro (poetizada por Fernando Pessoa) pode tanto significar esquecimento motivado, quanto ressignificar a lembrança para construir uma lógica e um sentimento de propósito seguido. “Deslembro” é um filme de movimento, que conduz silêncio e ação, como em seu início que já introduz o espectador no sofrimento desesperado, cru, físico, orgânico e urgente de um “passaporte rasgado”, outra metáfora pululante, já que alguém só se é se estiver presente burocraticamente e ou estatisticamente nos livros do Estado reinante. É também multi-geográfico (ouvimos francês, inglês, espanhol e português) e a linguagem comunicativa, livre, liberta e ambientada por uma epifania espectral e existencialista que desencadeia uma suspensão de tempo e espaço. Podemos dizer tudo sobre o filme, menos que seja covarde. E até mesmo a ingenuidade é embasada com debatedores porquês.
“Deslembro” é uma viagem a um mundo pessoal e intimista por um cotidiano fragmentado e por uma câmera próxima e tremida (criando a fotografia plástica, plácida e de poesia visual) quase personagem. A narrativa, embalada por conversas coloquiais e espirituosas; por achismos condicionados e repetidos, como a figura do Brasil de ter “onça no Rio”; e principalmente por hipocrisias enraizadas (ser livre na projeção, mas tão presa e apegada aos livros). É um filme sobre comportamentos sociais, principalmente analisados quando sozinhos. Sua diretora Flávia Castro (do documentário “Diário de Uma Busca“) sabe muito bem como criar sinestesia emocional e afastar o público da realidade ao mesmo tempo, numa linha tênue entre aproximar e afastar dentro de uma melancolia pop, quase Hipster, quase portuguesa abrasileirada, trazendo referências como o túmulo de Jim Morrison, magia negra e a “babaquice nostálgica” de “Copacabana Mon Amour”.
É um filme de retorno. Atual pela necessidade de despertar a resistência. De acordar a ideologia perdida. De reviver radical e historicamente a tortura, os medos, os receios, com a esperança na desesperança dos acordes de Lou Reed. Sim, “Deslembro” constrói-se por instantes e por micro-ações vivenciadas, muitas de dentro para fora. “Anistia é uma pequena vitória”, diz-se envolto à alienação pelo desconhecimento de causa (limitados e desentendidos) e ou às músicas africanas nos telhados franceses. Tudo é sensorial e arquitetado para provocar. Criar um desconforto pela dificuldade do acesso.
A volta ao Brasil é o “turismo afetivo”. O primitivo do “meio do mato” para se reconectar às raízes com a diversão pura de brincar na chuva . Não ser mais um estrangeiro. Um alienígena ambulante. A família no novo lugar sente o etéreo. A energia. Um tempo para se acostumar. É um retiro, um descanso da vida real. Ali funciona como um tratamento imediato e de choque para a integração total, inclusive de assistir novelas com o ator-cantor Fábio Junior e programa Sílvio Santos. Aqui, “papai” não é mais “papai”. Nova vida, novos nomes. Há uma leveza normativa. Uma normatividade ao som de Caetano Velloso. É a construção da importação de um tempo.
“Deslembro” é a recriação de uma época. De estudos em casa. De detalhes indicados. De introspecção familiar com o objetivo de auto-proteção (a paranoia do medo de “cair”). Tudo em prol da crença política, ingênua, utópica e necessária, de se mudar o presente para redefinir o futuro. Todos convivem com uma rotina caseira de reuniões revolucionárias. A “luta armada Sandinista” divide espaço com o calor, o ventilador e o tédio. É um deslumbramento em narrações adjetivas e analíticas. E consequências inevitáveis da Ditadura. “Imperalismo americano?”, “Não, é que eu não gosto de Coca-Cola mesmo”, diálogos perspicazes, espontâneos, sem eufemismos e defesas. Quase livremente infantis. “O passado está tão distante mesmo?”.
É também sobre a construção do carácter. De observar. De sentir. De receber. De degustar. De processar. Regurgita-se tudo e todos. De entender os silêncios, principalmente os próprios. É sobre o não esquecer. Da simbologia do corpo físico para “provar que morreu” e acabar com a incerteza do “desaparecido político”. O pragmatismo cria o conflito com a inocência. Impossível e incompatível unir os dois e permanecer a mesma pessoa. Tenta-se entender as complexidades dos adultos pela simplicidade do olhar das crianças.
Deslembrar para recomeçar, ouve-se de sua avó “figura” (a atriz irretocável Eliane Giardini), que lida com a perda e o luto “em aberto” (destruindo fotos por “medidas de segurança”) por uma incondicional destreza resiliente, espirituosa e destituída de moralidades sensíveis (“É tão difícil falar sobre essas coisas”). Eles são embalados com o descanso e trilha perfeitos de Pink Floyd após “um dia de trabalho”. É um filme de experiências, de rock e samba, entre a “capacidade de abstração dos surfistas” e a “ditadura do Cenoura e Bronze”, que nos faz inferir a “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, de Cao Hamburger.
“Deslembro” critica aceitando. Da “lei só quando interessa”. De um “papel que impede o ir”. É sobre encontrar um caminho. Uma metáfora político-social para que o Estado “reconheça o crime”. Por cúmplices lembranças espreitadas e com ruídos. O vento no rosto importa de vez esta suspensão temporal de imersão total. Sempre há uma opção. Será? Há um que de François Truffaut junto com a atmosfera musical de “Mania de Você”. Sim, é pressão adulta demais em uma adolescente em processo. Concluindo, é uma obra que encontra a maestria pela naturalização de seus atores, pela construção sensorial de emoções reais, pelas camadas que aprofundam novas camadas e pela leveza livre de contar as histórias com uma extrema intimidade espontânea. Foi o único representante brasileiro selecionado na mostra Orizzonti do 75º Festival de Veneza. Cotação: 5,0/5
Ao som de ele não, francês não
Por Vitor Velloso
Em um momento político bipolarizado, onde a maior parte da população tende ao fascismo e/ou discurso de ódio “Deslembro” é uma obra que se faz atual. Esta afirmação vem da própria temática do filme. Uma família que retorna ao Brasil após anos de exílio na França.
Dirigido pela Flávia Castro, o longa possui como protagonista Joana (Jeanne Boudier) e todos seus conflitos em retornar ao país natal após anos na Europa. O drama da personagem gera empatia no público, seu carisma se mantém presente na tela, porém, a narrativa à qual ela constrói como centralização da história, possui diversas fendas por onde potencialidades políticas correm. Não é que não existam críticas diretas ao fascismo ou relações diretas ao momento atual, mas falta o dedo na ferida. Pois a questão central já está no roteiro, com uma alma mais guerrilheira a obra seria de uma força incrível, mas irá acabar no ostracismo, por uma abordagem pouco reflexiva do momento histórico mais sombrio das terras tupiniquins.
Um dos pontos que mais incomodam em “Deslembro” são as crises histéricas da língua francesa, quando determinado personagem está irritado(a) ele(a) fala “branquês”, esta postura da película faz a abordagem perder força justamente pelo fato de não tratar da França diretamente. Compreensível o fato de estarmos falando de personagens que viveram na Europa a maior parte da vida, porém, o longa não é direcionado a pessoas que não compreendem o que é viver à sombra do passado. Existe uma diferença primordial na historicidade dos dois países, um viveu o protótipo de uma revolução mal sucedida o outro resiste contra a miséria e o fascismo até o momento presente, por este motivo argumento contra o uso da língua européia aqui.
As relações familiares formam o esqueleto da narrativa, o fato de Joana não lembrar de seu pai, apenas escutar que ele morreu, mesmo que não haja provas, é um dos pontos altos. Por ser jovem e ter crescido longe da ditadura, ela não compreende o momento (a)político que o Brasil enfrentava, logo, não se conforma com a morte do pai. Seu padrasto, um militante ferrenho, tenta transmitir os “valores” de uma guerrilha em prol da democracia, ainda que não seja bem sucedido. Já sua mãe, viveu seus dias de luta e agora deve permanecer mais presente, a fim de garantir a segurança de seus filhos. Se há outro problema no projeto, é a divisão de desenvolvimento dos eixos narrativos. Os irmãos são muito novos, logo, desenvolver um conflito dramático funcional ao redor deles, é quase impossível, mas as figuras paternas que permeiam Joana, são levadas a terceiro plano, a diretora prioriza o crescimento da adolescente, introduzindo um pequeno romance, frivolidades de sua vida como “criança”. A construção se faz necessária, afinal, não estamos tratando da nova Angela Davis, mas sim de uma menina filha de militantes. A gravidade desta decisão fica visível na progressão da história, quando a projeção se encerra e entendemos que a luta continua, mas não nos conectamos com a gama de subtramas que são apresentadas, inclusive a de sua vó (paterna), vivida por Eliane Giardini.
O carisma é inevitável, contudo, sua presença em tela serve como exercício didático aos dramas que Joana vive. Não tenho o interesse em diminuir seus problemas, entretanto, grande parte das problemáticas apresentadas se dão em um ambiente de Zona Sul, onde mais da metade de seu convívio é relacionado a problemas de pessoas brancas. São concretizações de uma classe perseguida? Sim. Mas uma boa parcela do Brasil ainda era reprimida de maneira intensa, mesmo que já de maneira diluída.
O foco narrativo se mantém nesse eixo de riqueza em um país que quebrou democraticamente, economicamente e socialmente, não à toa, o reflexo deste processo de pensamento, se é que podemos chamar assim, retorna hoje em 2018, elegendo um presidente capaz de dizer que o erro da ditadura foi não ter matado 30 mil. Por isso cito, com frequência o último longa póstumo de Raúl Ruiz, que enxergou as sementes do mal deixadas pelo governo totalitário, antes mesmo de ver se concretizar. “Deslembro” não é um projeto covarde, mas é frágil o suficiente para que algumas questões sejam levantadas em seu nome. Mas por uma questão de importância histórica, infelizmente anacrônica, deve ser assistido e refletido. Cotação: 3,0/5