EO
Um Burro no mundo cão
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2022
Não importa mesmo se no universo cinematográfico filmes são feitos com formas narrativas parecidas a outros, até porque há quem diga que todas as histórias já foram contadas. E referências-inspirações sempre ocorrerão, por mais que se tente correr. É exatamente o que acontece com “EO”, do polonês Jerzy Skolimowski (de “11 Minutos” e que atuou em diversos filmes, incluindo “Os Vingadores”, de 2012, vivendo o papel de Georgi Luchkov, e Dr. Zeigler em “Marte Ataca!”), longa-metragem, co-roteirizado com Ewa Paiskowska, exibido na mostra competitiva oficial do Festival de Cannes 2022, cujo título é uma onomatopeia do zurrar de um burro. Nós somos conduzidos pela subjetiva perspectiva ocular deste animal, de forma sensorial, etérea e psicodélica, através de suas consequências sócio-comportamentais em ser passivo e submisso em um cruel mundo “cão”. Esse ser sente toda a lista de sofrimentos durante sua “jornada de conhecimento”. De um circo (o lúdico) embarca na “aventura” da realidade (a hipocrisia nua e crua). Sim, a inferência fabular é imediata, mas por mais que soe igual, uma obra sempre é modificada pela contemporaneidade do momento. Como neste caso, que a radical releitura, reimaginada, evoca “A Grande Testemunha (Au hasard Balthazar, 1966), de Robert Bresson, sobre a existência de um jumento maltratado. E também “Cow”, de Andrea Arnold. E se formos um tom acima, também encontraremos ecos de “Dumbo”, live-action da Disney.
“EO” é uma exercício de linguagem, que quer a desconstrução de sua própria criação ao pincelar a estética da arte indie pela vanguarda orgânica (de luz estroboscópica e de imersão cognitiva, de câmera acompanhada) e ao estimular nossas percepções críticas apenas pela observação, também passiva e submissa, o que nos causa um desconforto e uma impotência. Nossas vulnerabilidades são expostas e escancaram o pior que há em nós humanos, seres que receberam o “presente do pensar”, mas que “jogaram tudo fora” pelo egoísmo à moda do ditado popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”. A maestria de “EO” está em não mastigar a história, deixando o espectador montar sua própria, com um que de “Mad Max” coloquial, talvez por causa dos bastidores desse circo menos convencional.
O cineasta polonês quer criticar nossa sociedade “burra” e “limitada”, perdida em ressignificar seus valores por padronizadas definições técnicas e vernaculares, mas essa forma só consegue potencializar seus egoísmos mascarados de simpatias, como “se meter” contra os maus-tratos). É, tudo isso traduzido pela contemplação realista, em que o naturalismo ganha auras metafísicas de sonhos acordados Federico Fellini e da alienação nossa dia-a-dia, uma proteção de sobrevivência. O protagonismo Burro, um excelente ator, por sinal, transpassa seus medos, silêncios, coragens e o amor por sua antiga dona. Essa epopeia de uma vida atravessa perigos da floresta; escuros de se acostumar e se adaptar ao novo habitat on the road; cerimônias de cidades de interior; mortes; espancamentos; brigas; praticamente o apocalipse. Esse Burro perde a inocência e “coleciona” abandonos, depressão, diversos abrigos e novos “donos” que o “adotam”.
“EO” é também um filme que imprime surrealismo moderno a fim de ressignificar um conto de fadas realista pela observação do social, com potencialização dos barulhos. Não configura uma viagem se lembrarmos do livro “Caim”, de José Saramago, que mostra sem suavizar a crueldade do mundo e a “reparação” divina; tampouco a “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, especialmente pela paleta cósmica de cores (fotografia de Mychal Dymek). Tudo para falar de pessoas burras (no jogo de futebol, por exemplo, que se vingam pelo “amor ao time”) e do burro de perspicaz inteligente (que sofre espancamentos por estar no lugar errado, na hora errada). Pois é, ser “burro” é uma benção. Sim, nós esperamos a vingança desse animal (o que mostra que nós ainda não somos tão civilizados assim). Dessa forma, “EO” vive única e exclusivamente para nos passar uma lição: a de diminuir em muito nossas “individualidades” e egoísmos. Sentimos pena e lutamos por sua sobrevivência. O filme conta com a participação especial da atriz francesa Isabelle Huppert, que já há um tempo redesenha sua carreira escolhendo projetos bem fora da curva. E assim, a mensagem que fica é a de que este Burro nunca perde sua inocência, por mais que sofra nunca “investe” em vingança. Talvez seja o novo Jesus Cristo moderno, porque “Pai, eles não sabem o que fazem!”.