O Amante Duplo
Um diretor domin(amante) da arte
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2017
Exibido no Festival de Cannes 2017 na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro, “O Amante Duplo” é um filme de extremos. Ou se ama ou se detesta. Talvez seja porque seu diretor François Ozon (de “Frantz”, “Dentro de Casa”, “Uma Nova Amiga”, “Oito Mulheres”, “Swimming Pool”, “Sitcom”) imprima uma característica classicista da cinematografia francesa: o desconforto da quebra padronizada da moralidade. Tudo embalado pelo naturalismo espontâneo de libertar a própria visão do corpo. A nudez não estimula teores sexuais e sim um genuíno comportamento de intrínsecas e microscópicas ações diárias. Somos convidados a observar, a participar como voyeurs assexuados em um universo de realismo fantástico, cujas sub-tramas pululam as mais absurdas metáforas psicológicas e derivadas de uma literatura ficcional mais realizada. É um filme de terapia analítica, de estudo de caso, de personificação das próprias crises existenciais no limite de suas personagens em fuga.
“O Amante Duplo”, uma adaptação do livro “Lives of the Twins”, lançado em 1987 e escrito por Joyce Carol Oates, é uma obra de viagens dentro de viagens. Percepções sobre percepções. É uma regurgitofagia verborrágica e uma possibilidade mental em se auto-desconstruir para enxergar o novo. Assim como todo tema abordado do cineasta francês. Ozon é a esperança de não deixar que todos os filmes transformem-se em meros exemplares novelescos de clichês hollywoodianos. Por não suavizar e não elementar com narrativas palatáveis, acreditando assim que a inteligência do espectador deve ser respeitada.
“O Amante Duplo” é um thriller ambiência-blasé de suspense cognitivo e de filosofia contraditória ao se conduzir com suspeitas abstratas no campo concretista e plural do cérebro humano. Não há maniqueísmos, não há certos, tampouco errados. Tudo é caminhado pela desconhecida infinitude de iminentes vivências e novos quereres e desmistificação de bipolaridade. Nós somos expostos à radiação de expandir nossas ideias, mitigar por completo nossas distâncias e definitivamente ressignificar conceitos e limites. É também um filme que busca a metalinguagem. Referências de livros dentro de livros por “focos incidentes”, detalhes-pistas, ângulos de câmera não convencionais (que incomodam pela quebra abrupta da padronização do mundo “lá fora”) e imagens sobrepostas, como por exemplo, o corte do cabelo e os procedimentos de um ultra close vaginal. Há uma elegância sexy sem procurar o vulgar. Há um humanizado cotidiano “inflamatório” da liberdade preferencial por terapeutas “homem ou mulher”.
Entre espelhos, planos, fotos antigas, contra-planos, a chuvosa poesia do gato preto, focos e imagens embaçadas, “O Amante Duplo” é um mergulho de tempo pausado em uma climática psique de humores. As dores, medos e frustrações somatizadas pelo estômago são existentes e tratadas na terapia e “seguras” em uma exposição em um museu. Os dias passam e sentimentos impedem a continuar a terapia, porque o terapeuta vira o “remédio” (com seus incomuns “métodos” mais embrutecidos, mais radicais, menos educados), o vício de não mais querer uma “só vez por semana”. Mudanças acontecem, vizinhos gentis continuam a fofocar e uma silenciosa aura de mistério é instaurada em um desenvolvimento direto, simples e de saudosismo modernista.
“O Amante Duplo” quer propositalmente o desconforto superficial, como se fosse um sonho acordado, uma epifania sonâmbula em planejamentos mentais. É também a essência do humano. Um ser primitivo, egoísta, sem “coração”, exclusivamente individualista e oportunista por natureza, que alimenta obsessões, confusões, contradições, naturalidades mascaradas ao andar e as multiplicidades camufladas de um Narciso sozinho em uma cósmica e solitária água à moda musical do grupo islandês Sigur Róse um que iinferência ao filme “Elle”, de Paul Verhoeven, conjugado a um “A Pele Que Habito”, de Pedro Almodóvar.
Neste ponto, a moralidade torna-se uma expansão de si mesmo, aprendendo a conviver e a aceitar a verdade particular em uma androgenia visual. A sentir o outro lado: o fantasma do estupro, os sonhos reais, a sensualidade. Sim, há também um que de “A Bela da Tarde”, de Luis Buñuel, que o próprio Ozon recriou em “Jovem e Bela”. De um lado o sexo animalesco de criaturas cromossomos, do outro romântico. Por que segmentar se você pode unir os “gêmeos canibais”? Por que não integrar diferenças e esquecer os rótulos pré-estabelecidos? Duplas personalidades? Loucura? Histeria? Não há respostas. Tudo é deixado ao espectador. E que bom que é assim.
“O Amante Duplo” é um surrealista existencialismo com personalidades personificadas em pornô-soft, beijos “menstruados”, desejos reprimidos, a inversão de papéis sexuais. É uma versão francesa de “Quero ser John Malkovich” com o mundo de Brian de Palma, com mais porradas, com mais Frank Sinatra, com mais imagens divididas, com mais sutis expressões. É um noir investigativo de dentro para fora. Ora mórbido, ora parasita, ora virgem, ora violento, ora Hitchcock, ora Polanski. Nós espectadores percebemos tudo e mais um pouco, só que a condução da direção é completamente única, excepcionalmente ímpar e totalmente segura de si. E com um controle absoluto de traduzir subtextos e de nos envolver na casualidade banal de vidas privadas.