A Noite do Jogo
Na maleabilidade de um tabuleiro de Banco Imobiliário
Por Gabriel Silveira
Jonathan Goldstein John Francis Daley (Vacation e o último de fama cult por sua performance no papel de Sam Weir em “Freaks and Geeks”) certamente me deram o prazer de estar completamente errado ao prepotentemente condenar um filme por seu poster. Não cheguei a ler Vacation pelo mesmo motivo que condenei, num primeiro momento, Game Night, “A Noite do Jogo”. O primeiro ostenta em seu poster um palerma Ed Helms executando um ”Clark Kent” enquanto arregaça sua jaqueta e o segundo apresenta um west highland white terrier entre duas faces de curiosidade abobalhada de Jason Bateman e Rachel McAdams. Como Vacation não teve a melhor das recepções pela crítica geral e nem um apelo popular considerável, resolvi passar.
No entanto, caindo, quase como numa obrigação ética, dentro de uma sala de projeção de “A Noite do Jogo”, fui levado por uma agradável surpresa após os primeiros momentos de um desnecessário constrangimento de minha parte que era apenas resultado de minha vontade de não dar o braço a torcer às vontades do filme. O tom azedo inicial da sequência de títulos de abertura que apresentava peças de jogos de tabuleiros caindo em slow motion sob uma penumbra violeta breguíssima que tenta, de cara, introduzir o caminho por onde a comédia seguiria, é cortado de supetão pela sintetizada apresentação do casal Max (Bateman) e Annie (McAdams) e a obsessão que compartilham por qualquer tipo de jogo que estimulasse o diabo competitivo que há no interior de cada um e acabou levando o casal ao matrimônio.
O primeiro ato de “A Noite do Jogo” segue enquanto nos é apresentada, durante a introdução de Jesse Plemons no papel do constrangedor e levemente sociopático vizinho policial do casal, a eloquência de Goldstein e Daley no manuseio e desdobramento da mise-en-scène. Não por apenas conseguirem inserir um tom de constrangimento cômico e ameaçador na introdução da personagem, mas, por realizar tal flutuação em um timing admirável, cheio de dignidade, que parece quase pedir a entrega do espectador a um modus operandi de leitura passivo pelo resto da projeção. Dando continuidade às flutuações do tom, começam as introduções dos embasamentos das running gags que até mesmo acabam desaguando em um jumpscare que merecia, mais do que o vizinho sociopata, ficar de fora da noite de jogos,no entanto, por conta do carisma imenso do elenco de amigos do casal que emana uma química graciosa pelo quadro, podemos deixar essa passar.
Bateman e McAdams apresentam a construção de um romance acomodado de meia idade que dá vontade de apreciar a química dos dois por minutos a fio, não como uma menina do tumblr a fim de shipa-los em um mar de re-tweets, mas estudar as nuances das escolhas de representação de cada um e como elas harmonizam-se na coreografia do improviso do corpo cômico destes. Me chegam velozes as imagens da sequência onde o casal rende despreocupadamente três criminosos em um bar onde acreditavam estar encenando um jogo com uma arma de brinquedo — quando esta na verdade era uma verdadeira .44 — após gritarem palavras de ordem irônicas aos rendidos, Annie dirige-se saltitante à jukebox e começa a cantar Semi-Charmed Life da Third Eye Blind usando a .44 como microfone e em seguida passa a mesma para as mãos do marido que a recebe como um pai recebe um brinquedo de uma criança numa brincadeira que não deposita muita fé.
E é no mote da brincadeira e do jogo que o filme (obviamente) desenrola toda a estruturação do enredo, mas o que não há de tão óbvio na execução de Goldstein e Daley (apesar de uma ambição para com o absurdismo da trama que não consegue concretizar-se com a fluidez e o timing de seus primeiros momentos) é como estes abusam de um formalismo gráfico, já saturado por precárias execuções no mercado, para criar em despercebidas composições rimas de objetos do imaginário do jogo contemporâneo, seja no grande plano geral de transição que faz da composição um imenso tabuleiro de miniaturas oriundas de um After Effects, ou, no plano de uma sequência de perseguição onde o quadro remete ao de um carro em um game de terceira pessoa.
Mesmo com o desconforto curioso de perceber que quase todas as piadas escritas especificamente para uma audiência norte americana são recebidas fervorosamente por uma audiência integralmente brasileira, “A Noite do Jogo” afirmou-se como a mais agradável surpresa deste fim de semestre.