Clube dos Vândalos
União por trás da selvageria da motocicleta
Por Pedro Sales
Uma jaqueta preta que estampa uma caveira atravessada por duas facas já é o suficiente para suscitar tanto medo quanto ódio em Chicago durante os anos 60. O símbolo representa o motoclube dos Vândalos, execrado pelas autoridades e visto com admiração pelos mais jovens. Para captar o espírito do movimento da contracultura e o microcosmo dos motociclistas em “Clube dos Vândalos“, o diretor Jeff Nichols adapta o livro de fotojornalismo “The Bikeriders” (título original do longa), de Danny Lyon. A adaptação, porém, não se dá só na narrativa, mas estende-se para o próprio nome do motoclube registrado pelo fotógrafo no livro lançado em 1968. Assim, os “Outlaws” (foras-da-lei) tornam-se os “Vandals”. O longa, no entanto, não tem como foco apenas as contravenções do grupo ou a selvageria inerentemente associada culturalmente aos motoclubes. Aqui, há uma preocupação muito maior em tensionar os vínculos forjados nesse espaço e como, por meio dessa união, tornam-se família.
Em duas linhas temporais, 1965 e 1975, Kathy (Jodie Comer) é entrevistada por Danny Lyon (Mike Faist) para relembrar a trajetória do motoclube, desde sua fundação como um simples grupo de corrida até a decadência e transformação em uma gangue de fato. Assim, o filme utiliza muitas vezes as falas da personagem como uma espécie de narração, na medida em que as cenas rememoradas aparecem na tela. O primeiro encontro com Benny (Austin Butler), que cinco semanas depois se tornou marido dela, e com Johnny (Tom Hardy), o líder do bando que promete protegê-la, conta com os comentários pontuais de Kathy no contato com um novo mundo, em ótima atuação de Comer. O diretor, inicialmente, consolida esse mundo como um espaço para liberdade, como os outros entrevistados por Danny – papel de escuta passiva que pouco interfere no longa em si para além de sua estrutura de flashbacks – apontam, e, acima de tudo, um lugar onde responsabilidades e preocupações são poucas.
Atravessar sinais vermelhos e andar em uma enorme coluna de motos é o que move aqueles homens, além de um senso muito claro de coletivismo. Jeff Nichols consegue transmitir isso em composições que destacam o motoclube como uma multidão bastante unida e evidencia a adrenalina com cortes rápidos que acompanham a aceleração das motos. Ainda assim, “Clube dos Vândalos” muito mais evoca do que representa de fato a verve contracultural do período. Como argumentado anteriormente, as brigas e as confusões, até filmadas de maneira decente, ficam em segundo plano em detrimento da relação quase familiar entre os membros. O longa até se inicia com uma briga, no melhor estilo in media res – expressão para “no meio das coisas”, quando determinada obra não começa pelo início -, mas o que há de verdadeiro está na narração de Kathy que rememora a comunidade existente. Portanto, este é um filme que se destaca muito mais em seu caráter melodramático das relações do que nas confusões, que não são tão numerosas quanto os dilemas internos após a mudança no DNA dos Vândalos.
Ao negar a frontalidade da selvageria, muitas vezes se estruturando por elipses, à exceção de brigas pontuais, a obra se encaminha para uma abordagem formal bastante convencional e narrativamente segura, eximindo-se de explorar temáticas espinhosas de maneira direta, como o uso de simbologia nazista. A estrutura narrativa, assim, também é pouco arrojada, calcada sobretudo nos flashbacks a partir da narração. Portanto, a sensação que dá é que, para um filme que se propõe a mergulhar no universo dos motoclubes e tudo que ele significa, não se propõe a ser tão radical quanto seus retratados. Não tem o espírito quente de Johnny ou a loucura de Zipco (Michael Shannon), e sim o caráter medidativo de Benny. Talvez a coragem de Jeff Nichols resida em se desvincular do foco as já batidas brigas do grupo para dar destaque à união, mas não se pode afirmar que seja uma decisão que condiz com a história que ele propõe a contar, ou pelo menos pode-se dizer que enfraquece toda a pretensa sensação de perigo consolidada apenas na metade final do longa.
Aos clássicos, ele faz alguns acenos, como a menção direta a “Sem Destino” (1969), de Dennis Hopper, e “O Selvagem” (1953), estrelado por Marlon Brando e tido como motivo para Johnny iniciar o clube. Em determinada cena de duelo, o filme traz um pouco de “O Selvagem da Motocicleta” (1983), de Francis Ford Coppola, na ambientação erma. Dessa forma, “Clube dos Vândalos” é uma obra que parte de um lugar muito próprio para deixar o caráter contracultural e as brigas ao secundarismo. Tais elementos estão, sim, presentes desde o início, até porque o próprio ato da reunião dos Vândalos é uma expressão contracultural, mas não são os escapamentos barulhentos, as brigas de faca e as jaquetas de couro que realmente importam. É também por isso que Nichols não pesa tanto a mão nestes elementos, o que enfraquece a própria construção do símbolo do motoclube, tão bem evocado na cena inicial. Mas, essa decisão é também o que engrandece bastante a metade final da obra, deixa a emoção transbordar ao demonstrar que não é só um clube, mas família.