Até os Ossos
Apática Inanidade
Por Vitor Velloso
Festival de Veneza 2022
Após “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), Luca Guadagnino tornou-se um diretor que gera expectativas para cada novo lançamento seu na indústria cinematográfica. Está certo que parte de seu sucesso enquanto realizador já poderia ser visto em outros longas como “Um Mergulho no Passado” (2015) ou mesmo em “Um Sonho de Amor” (2009), mas é com “Me Chame Pelo Seu Nome” e com o remake de “Suspiria” (2018) que o diretor rompe a bolha do cinema. Em seu filme “Até os Ossos”, ele decide dar uma guinada em direção a um “Crepúsculo” (2008) com todos os cacoetes formais e estruturais da A24.
É um tanto quanto constrangedor acompanhar a saga de Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet) atravessando parte do território estadunidense em um road movie de vampiros apaixonados, entre crises existenciais por serem “devoradores” (termo utilizado no filme) e encontros com seus semelhantes. O grande problema da obra é querer estetizar de forma tão meticulosa e “pré-concebida” cada novo plano, que o projeto se torna estéril e sem alma. Assim, apesar de alguns belos planos, as cenas vão se amontoando com um propósito questionável e burocrático, dependendo de dois personagens específicos para criar algum tipo de tensão ou interesse no desenvolvimento dramático de “Até os Ossos”, Sully (Mark Rylance) e Jake (Michael Stuhlbarg), que ganham destaque no projeto por suas atuações e pela fotografia que contrasta com o restante da película. No caso de Sully, a primeira cena na casa é eficiente para mostrar uma frieza mórbida (diálogo), com algum tom de afabilidade (atuação de Mark Rylance) e um grau de amedrontamento, tanto por uma dramaticidade do contexto, quanto pela imposição da fotografia ao enquadrar Sully em ângulos adversos, com a parede da casa servindo de moldura para seu destaque. Por outro lado, a cena de Jake é tensa do início ao fim, com a luz da fogueira oscilando nos olhos do personagem e a tensão palpável nos diálogos.
Com exceção dessas cenas, o filme parece ser guiado por uma lógica da A24, estética e estrutura pautada de forma automatizada pela “art house” industrial, desprovido de qualquer paixão e honestidade. Não por acaso, as atuações centrais são robotizadas, piorando aquilo que o roteiro já não é capaz de entregar, desenvolvimento dramático dos personagens. Maren até possui algum conflito digno para chamar de seu, mas sua relação com Lee é fria e artificial, quase que a obra assumindo a inevitabilidade do acaso. Aliás, é curioso como neste universo onde “devoradores” existem e Sully afirma que “nós não somos muitos, mas mais do que você imagina”, a cada esquina tem um novo vampiro traumatizado para compor a narrativa.
Assim, o maior mérito de Luca enquanto cineasta fica cada vez mais espaçado em “Até os Ossos” seu interesse por corpos, relações e jogos de sedução, como na cena do parque de diversões ou nas outras duas já mencionadas. Contudo, mesmo que o projeto procure esse caráter estético automatizado, pronto para gerar algum tipo de impacto visual no espectador, existem cenas que são capazes de constranger profundamente o público, duas cenas são mais impactantes nesse sentido: o sonho de Maren com o pai, construído através de transições “fotográficas” (vale mencionar o desperdício do talento de André Holland) e a cena à la Xavier Dolan, onde Lee dança em um cômodo ao som de “Lick It Up” e a câmera acompanha os movimentos do ator, com a diferença que em “Mommy” (2014) é a libertação momentânea de um personagem e aqui é apenas um estilo fajuto para tentar demonstrar como Lee é um personagem descolado.
Por fim, “Até os Ossos” não funciona em nenhuma direção que tenta, seja no romance ou no horror, ficando à deriva de algum destaque isolado de personagens que aparecem esporadicamente ao longo deste tortuoso road movie de “devoradores”. Com exceção da cena de abertura e desses brilhos isolados, o projeto é tão desprovido de alma que armazena a voz do pai em um aparelho de reprodução para terceirizar suas possíveis emoções.