Viver para Cantar
Resistir ou Deixar de Existir
Por Jorge Cruz
Durante o Festival do Rio 2019
“Viver para Cantar“, co-produção de China, França e Canadá – mas na prática um filme chinês – dialoga muito mais com o espectador brasileiro do que talvez ele ouse acreditar. Encontrar essa obra como sessão de abertura particular do 21º Festival do Rio aumentou a sensação de que a resistência cultural, infelizmente, é um caminho sem volta. O filme, que se encontra na Mostra Expectativa, foi exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2019. Lá essa visão globalizante do diretor e roteirista Johnny Ma foi apresentada pela primeira vez. O cineasta nasceu e viveu em Xangai até os dez anos de idade, quando imigrou para o Canadá, onde mora até hoje.
Em “Viver para Cantar” ele resgata essa origem chinesa nos colocando na cidade de Chegdu, capital da província de Sichuan. Em um bairro periférico, onde se observa uma explosão imobiliária no entorno, há um simples galpão onde uma trupe de Ópera Sichuan (com cantos que parecem lamentos) vive, ensaia e se apresenta. Quase todos os seus membros estão à beira de velhice, à exceção de duas moças. Nenhuma parece se interessar muito em passar os longos anos de sua vida ao lado daquele grupo. Uma delas é Dan Dan (Guida Gan), sobrinha da administradora da trupe, Zhao Li (Ziaoli Zhao). Mesmo com gratidão eterna pela criação dada pela irmã de sua mãe, seu desejo de criar asas vai afastando aos poucos seus interesses do local onde se apresenta.
Quando é dito que “Viver para Cantar” dialoga com várias questões latentes no cotidiano brasileiro, é fundamental que se diga que o objeto principal do longa-metragem é a discussão acerca da desvalorização das manifestações culturais. Por isso as duas sequências iniciais da obra, tão instigantes à primeira vista, se tornam tão significativas. Na primeira delas há uma apresentação de garotas que lembram muito as cheerleaders que os Estados Unidos adoram exportar em suas transmissões esportivas e filmes de adolescentes. Na segunda a trupe está na estrada ao som de Ave Maria, composição clássica de Charles Gounod se sobrepondo à obra pré-existente de Johann Sebastian Bach. Com isso temos representantes de uma ópera que encontrou sua fase mais moderna na China do século XVIII com a troca de máscaras ao som de uma música da Europa da segunda metade do século XIX, um aparente contrassenso. Quando o longa-metragem se desenvolve fica clara a relação de sutil colonialismo cultural, mesmo que referenciada. Porém, as imagens produzidas por Johnny Ma levam a crer que a tonalidade é crítica de forma proposital.
A partir daí o filme aborda as formas como a cultura tradicional, popular e fundante de um povo é sufocada por diversos agentes. No caso desse roteiro, a principal, a mais pungente, é a especulação imobiliária. O governo não se interessa em preservar o espaço onde a trupe diverte dezenas de espectadores em seus espetáculos constantes. O desenvolvimento econômico da China precisa cobrar uma contrapartida. Ao buscar soluções, a burocracia e o jogo de empurra sofridos pela gerente da ópera conecta o público brasileiro de forma inapelável. São secretarias e subsecretarias, cada uma responsabilizando a outra. Quando a câmera de Ma nos mostra aquele terreno castigado pelo tempo e falta de recursos para manutenção cercado de imponentes arranhas-céus, não dá para não se lembrar do caso do Teatro Oficina, em São Paulo.
Há uma estética em “Viver para Cantar” ao mesmo tempo curiosa e desconstrutivista do que se entende de cultura tradicional chinesa pelos ocidentais. Acostumados com obras audiovisuais pautadas no realismo fantástico, a grande marca da maturidade dessa obra é o contraste entre o colorido dos lindos figurinos das apresentações com a pobreza e falta de acesso a recursos do backstage/moradia da trupe. Há no primeiro ato, reservado a apresentações e ensaios, algo entre “Bagdá Café” e “Tatuagem“, porém sem os traços de transgressão. A última coisa que a protagonista Zhao Li quer é provocar qualquer pessoa, preferindo garantir a sobrevivência da ópera e, por consequência, dos artistas que dependem dela.
Já sua sobrinha, Dan Dan, não quer ser a pessoa que receberá o bastão da centenária tradição de Sichuan. Reflexo de sua geração, seu desejo é mergulhar no mundo fora dali. Essa ausência de herdeiros de manifestações culturais tradicionais lembra o longa-metragem “Mateus“, destaque na 3ª Mostra Sesc de Cinema, um assunto bastante abordado naquela crítica. O roteiro traz uma cena curiosa para representar os anseios da personagem. Uma analogia com o pavão, animal que ela aparece cuidando, conhecido pela exuberância ao mostrar suas penas quando abre a cauda. Dan Dan tentará trilhar o caminho do entretenimento moderno, aquele que – ao mesmo tempo que dá mais oportunidade de ganhar dinheiro – assume de vez a colonialismo cultural com suas boates e música pop.
Na cena plasticamente mais bonita de “Viver para Cantar”, Zhao Li tem pesadelos com a demolição do espaço. A câmera de Johnny Ma nos coloca dentro do imóvel, com todos os objetos e ferramentas daquele espaço indo aos ares. Ali conseguimos sentir o peso da destruição de um ponto cultural, formador de dignidade de uma comunidade. Também se concretiza o descaso das políticas públicas e a ausência da educação cidadã, fatores que possibilitariam que aquele galpão fosse abraçado pelo seu entorno. O roteiro de forma inteligente nos transporta para esse momento como um sonho da protagonista. Portanto, sobra tempo para que outras abordagens que permitam o resgate daquela cena mentalmente. Em uma delas, a decana do grupo, chamada por todas de avó, aparece com fone de ouvido plugado em um tablet. É quanto um dos personagens sentencia “se isso é o que o público quer, a ópera acabou”.
O pouco barulho que “Viver para Cantar” talvez faça seria um reflexo daquilo que ele mesmo critica. Em uma época onde para muitos (até mesmo frequentadores de festivais) o cinema deve se propor a ser uma diversão fácil para consumo rápido, é provável que um longa-metragem como esse não angarie muitos seguidores. Até porque ele se vale desse leque de temas e de algumas boas cenas como base de sua qualidade. Longe de ser uma obra-prima, ganha muita força em seu discurso de resistência, com um início de ato final que se diferencia totalmente do restante da obra e – principalmente – com a mensagem de que a arte sobreviverá a qualquer diversidade. Começar o Festival do Rio de 2019 vendo produtores de cultura encarando uma grave crise com um sorriso no rosto também do lado de dentro da tela é de aquecer o coração.