Festival Curta Campos do Jordao

Um Jóquei Cearense na Coreia

Déjà vu

Por Pedro Mesquita

Durante o É Tudo Verdade 2022

Um Jóquei Cearense na Coreia

Os últimos lançamentos do diretor Guto Parente parecem dotados de intenções bastante diferentes. Se “O Clube dos Canibais”, por exemplo, representava uma aventura pelo cinema de gênero, na qual se compunha uma caricatura muito espirituosa da burguesia brasileira, “Um Jóquei Cearense na Coreia” — dirigido junto de Mi-Kying Oh — tem intenções documentais e coloca-se muito longe da caricatura: o que se objetiva aqui é a construção de um retrato na medida do possível justo — no sentido de um retrato que não exagere as principais características, positivas ou negativas — do seu objeto de estudo. A personagem principal do filme é um homem complexo, e como tal ele será analisado pelo cineasta.

Quem é, então, esse homem? Bom, o próprio título do filme o apresenta ao espectador de maneira muito direta: ele é um jóquei cearense na Coreia. Mais especificamente, seu nome é Antonio Davielson. Na primeira sequência, já obtemos uma ideia do seu caráter extraordinário — diante de um estádio lotado, Antonio é mostrado sagrando-se vencedor de uma corrida — mas as suas origens são as mais ordinárias possíveis: a seguir, o filme apresenta, através de uma série de entrevistas, a vida pregressa da personagem. Vemos que, como parte significativa dos brasileiros, ele vem de uma situação material pouco vantajosa, e que buscou superá-la por meio do esporte (em seu caso, as corridas de cavalo, para as quais ele desde cedo demonstrou aptidão).

De fato, a experiência de Antonio encontra ressonância na experiência de tantos outros brasileiros, não só quanto às origens mas também quanto à necessidade de migrar buscando melhores condições de vida. Nesse sentido, o filme investe em imagens que exploram a tentativa de adequação do brasileiro e sua família ao novo país. Vemo-los frequentando o supermercado, alfabetizando a filha em mais de um idioma ao mesmo tempo (o português e o inglês, este podendo ser usado na Coreia). Essa adequação, como percebemos, nunca é plena. Uma cena que simboliza isso de maneira sutil é aquela em que a filha é vista nas aulas de karatê; todos os outros meninos da sala repetem os comandos verbais dados pelo professor, menos ela. A saudade de casa é um tema que vai se desenvolvendo paulatinamente até atingir o seu paroxismo na seção final do filme, em que Antonio sente a necessidade de viajar de volta ao Ceará para reencontrar a família; admite sentir falta da antiga vida e dá a entender que esse é o destino final que almeja alcançar.

O filme faz, portanto, de Antonio uma figura familiar, cujos anseios são de fácil identificação por parte do espectador (não à toa se encerra com a canção “No dia em que eu saí de casa”, sucesso da música sertaneja). Por outro lado, também faz dele uma figura absolutamente incomum: é aí que entra o seu “lado coreano”. O que mais interessa aqui é o status de celebridade de que Antonio é investido na Coreia, condição essa que ele muito provavelmente não encontraria no Brasil. Abundam imagens nas quais ele é visto concedendo entrevistas (com direito a uma tradutora que o ajuda) e recebendo reconhecimento pelo seu trabalho: chega até a levar um prêmio, o de jóquei mais popular do ano de 2018. Apesar da aparência sempre simpática, está sempre latente um sentimento de desconforto — especialmente evidente, por exemplo, quando ele tem que discursar após levar o prêmio. “Um Jóquei Cearense na Coreia” retrata o processo de produção de imagens em torno de Antonio, e como isso por vezes o desconcerta (outro exemplo: após receber cumprimentos de uma moça coreana, que fala que ele tem o potencial para ser o melhor do mundo, ele agradece o elogio, mas o dispensa, dizendo que não tem tal ambição).

Se boa parte do filme se faz das imagens que são produzidas de Antonio, um interessante contraponto a isso é a breve seção que mostra as imagens produzidas pela própria família acerca do seu cotidiano. De repente, começam a pulular na tela imagens de chamadas de vídeo, stories de instagram e toda sorte de vídeos encenados por Antonio e sua família (aqui, sua esposa tem protagonismo). Essa sequência do filme mostra — ao contrário da exposição verbal das entrevistas — de maneira muito hábil a resistência e o ânimo das personagens apesar das circunstâncias desfavoráveis, e diz muito sobre elas por causa da espontaneidade com que elas aparecem brincando, cantando, se divertindo etc. Isso nos coloca a refletir o que seria do filme se ele não se ativesse tão firmemente à dinâmica expositiva em prol de uma outra que fizesse florescer essa espontaneidade (um filme que conquistou com muito êxito tal empreitada é o belo “Eu, um Negro” (1958), de Jean Rouch, no qual o diretor dá ao seu grupo de personagens a oportunidade de fazer o filme eles mesmos; o resultado é tão ou mais revelador quanto o mais bem sucedido dos documentários de viés “clássico”).

Porém, o que se vê em “Um Jóquei Cearense na Coreia” é de fato um documentário de estilo clássico-expositivo; o que de certa forma é de se lamentar, pois Guto Parente e Mi-Kying Oh produzem, a partir de uma personagem absolutamente única, imagens indistintas, já vistas. O retrato que nos fica ao final é menos o da vida de um homem que a abstração da vida de um homem a partir das categorias sob as quais o diretor decidiu enquadrá-lo: profissional hábil, pai dedicado, imigrante com saudade de casa. O filme nos agrada na mesma medida em que nos dá a sensação de um potencial pouco aproveitado.

2 Nota do Crítico 5 1

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