O Clube dos Canibais
Quando os poderosos cedem aos seus desejos primais
Por Pedro Guedes
De certa maneira, “O Clube dos Canibais” não poderia ser mais diferente de “Inferninho”, longa anterior do brasileiro Guto Parente: se um gira em torno de um grupo de pessoas massacradas pelos poderosos e que se recusavam a abrir mão do único território que lhes pertencia (no caso, o bar Inferninho que dava título ao filme), o outro passa a se concentrar justamente na elite que insiste em explorar e esmigalhar os mais pobres. A diferença, no entanto, é que “O Clube dos Canibais” retrata a imoralidade desta elite como um legítimo ato de selvageria primal (sim, os riquinhos são literalmente canibais) – e isto acaba transformando o filme não apenas em um comentário socioeconômico pertinente, mas também em um belo exercício de gênero.
Também roteirizado por Parente, “O Clube dos Canibais” nos apresenta a Gilda e Otávio, um casal de ricaços que dividem um hábito absolutamente condenável: atrair representantes de classes mais pobres para uma emboscada – no caso, Gilda transará com algum funcionário, por exemplo, e Otávio lhe surpreenderá com uma machadada na cabeça para, logo em seguida, devorar a carne do cadáver ao lado de sua esposa. Em seu dia a dia, o casal integra um grupo chamado “Clube dos Canibais”, composto de vários outros membros da elite brasileira – e, depois que Gilda acidentalmente flagra Borges, o líder do grupo, no meio de um ato que poderia comprometê-lo, a vida dos dois protagonistas é imediatamente colocada em perigo.
Não que o “ato” cometido por Borges devesse ser encarado como um pecado, mas a hipocrisia, o cinismo e o falso moralismo dos burgueses (ou, pelo menos, dos retratados na tela) acaba transformando uma atitude simples em algo constrangedor – o que diz muito sobre a nossa sociedade, infelizmente. E é aí que surgem as virtudes de “O Clube dos Canibais”: escancarando o cinismo da elite brasileira (comumente vista como uma das mais mesquinhas do mundo), o roteiro de Guto Parente joga um holofote em cima da barbaridade patrocinada pelos poderosos, que frequentemente agem como verdadeiros canibais em prol de seus interesses particulares. A premissa, portanto, é a de refletir o que talvez seja o maior problema do Brasil (o da desigualdade social/econômica, com ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres) mesmo que, a rigor, tenha que levar a ideia ao extremo, retratando a brutalidade da classe alta de maneira mais objetiva e menos burocrática do que é na realidade.
A partir daí, Parente se sai particularmente bem ao envolver a premissa em um tom adjacente de humor, combinando o cinismo da burguesia à ironia que fatalmente se voltará contra ela – e o sarcasmo está presente desde a sequência inicial, onde uma cena de sexo culmina em um orgasmo representado não apenas pelo sêmen, mas pelas gotas de sangue que pingam no chão (e a reação da agente passiva na relação, por sua vez, só faz o espectador ficar ainda mais surpreso diante do que está acontecendo). Da mesma forma, a narrativa se desenrola de maneira tão… inusitada que, quando certo personagem diz “Obrigado, de coração“, a frase pode assumir uma conotação diferente, já que “coração” é algo que certamente mexe com os desejos de Otávio e Greta. Aliás, o modo como Parente constrói a tensão é cuidadoso que, em dado momento, quando uma relação sexual é interrompida à força, o som de uma máquina próxima aos personagens segue emitindo um som similar ao da penetração que estava acontecendo até então, denotando a inteligência do design de som ao dar continuidade a uma situação mesmo que a própria tenha sido cortada no meio.
Durando ligeiros 84 minutos, “O Clube dos Canibais” representa uma inversão interessante em relação a “Inferninho”: se um aborda o drama dos mais pobres de maneira notavelmente sofrida e empática (algo que se refletia na estética desgastada, acinzentada e “suja” daquele filme), o outro mergulha no ponto de vista dos poderosos que ganham a vida massacrando uma classe socioeconômica inteira, mas sempre retratando-os como vilões sanguinários capazes de arrancar as vísceras de suas presas em prol somente de um prazer sádico. Se o realismo beneficiou “Inferninho”, agora é o exagero que beneficia “O Clube dos Canibais”. E ambos não poderiam ser mais relevantes para o Brasil no qual vivemos há tantas década.