Tudo Sobre a Mostra de Cinema de Tiradentes 2023
O primeiro evento cinematográfico do calendário nacional acontece de 20 a 28 de janeiro com jeitinho mineiro e temática Mutirão
Por Vitor Velloso
Já é tradição começar o ano do Cinema Brasileiro com a Mostra de Tiradentes. Com jeitinho interiorano e sabor de pão de queijo, a edição do festival mineiro acontece de 20 a 28 de janeiro, no município de Minas Gerais, conhecida por sua estrutura colonial barroca. A Mostra sempre buscou, e este ano não poderia ser diferente, não só fomentar nosso audiovisual, com exibições de obras inéditas e de homenagens, mas principalmente abrir canais de conversas em debates temáticos sobre a sétima arte contemporânea.
Mas em 2023 as consequências da crise financeira das políticas públicas chegaram a Mostra de Cinema de Tiradentes. O festival precisou reduzir custos e limitar dias aos jornalistas e críticos que fazem a cobertura. Dessa forma, até mesmo o Vertentes do Cinema foi avisado, por parte da produção, que a credencial de imprensa só começaria valer no quarto dia, especificamente para o início da Mostra Aurora. Nós do site lamentamos perder três dias de filmes, da cerimônia de abertura e a possibilidade de realizar entrevistas presenciais com os homenageados. Pois é. Apesar disso, por conta da logística oferecida pelo festival, o Vertentes do Cinema estará cobrindo, de forma presencial, a partir do dia 23, quando as Mostras Competitivas começarão. Dessa forma, as matérias especiais sobre a abertura e sobre a Homenagem, irão acontecer de forma remota.
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A Homenagem, destinada aos cineastas Ary Rosa e Glenda Nicácio, figuras já conhecidas da Mostra de Tiradentes, contará com a exibição de todos os filmes realizados pela dupla. E para quem não puder estar presencialmente na Mostra, haverá exibição online e gratuita de alguns filmes dos diretores, como: “Café com Canela” (2017), “Ilha” (2018), “Até o fim” (2019), “Voltei!” (2020).
“Nas versões presencial e online, a Mostra Homenagem é a oportunidade de ver reunidos os filmes da dupla de homenageados Ary Rosa e Glenda Nicácio. Reunimos seis filmes, quatro que já foram exibidos na Mostra de Tiradentes, entre eles dois que tiveram suas estreias na Mostra Olhos Livres (Até o Fim e Voltei!), e dois filmes recentes que estreiam na Mostra este ano (“Mugunzá” e “Na Rédea Curta“)”, disse Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial da Mostra de Tiradentes.
Assim, o primeiro evento cinematográfico do calendário nacional, que tem como característica ser parte das tendências cinematográficas “ditadas”, chega a sua 26a edição, apresentando-se em seu site oficial pelos Diretores da Universo Produção e Coordenadores da Mostra de Cinema de Tiradentes, Raquel Hallak d’Angelo, Quintino Vargas Neto e Fernanda Hallak d’Angeloser, ser “maior e mais convicta do seu papel – ser plataforma de lançamento do cinema brasileiro contemporâneo apresentando ao público a diversidade da produção brasileira, com novas representatividades, com novas abordagens, personagens, estéticas, com as permanências e mudanças e com as recepções críticas desse fazer cinematográfico, além promover intensas atividades de formação, como debates, encontros e diálogos audiovisuais, rodas de conversa, oficinas, laboratório, masterclasses, lançamento de livros, performances, exposições, atrações artísticas”. A seleção de 134 filmes (entre longas, médias e curtas-metragens), de 19 estados brasileiros (AL, AM, BA, CE,DF, ES, GO, MG, MT, PA, PB, PE, PR, RJ, RN, RR, RS, SC, SP), poderá ser conferida em 57 sessões de pré-estreias e mostras temáticas em três cinema instalados na cidade – Cine-Praça, Cine-Tenda e Cine-Teatro.
“Nesta edição, a temática é Cinema Mutirão, ela responde aos últimos três anos, quando a pandemia de COVID-19 e a ausência de política pública afetaram drasticamente a economia criativa no país. Muitos grupos de lugares diferentes e de campos artísticos distintos (dança, música, teatro) se uniram para fazer audiovisual com os recursos dos editais emergenciais da Lei Aldir Blanc, que, no seu caráter abrangente e flexível, trouxe algumas inovações nas obras, na forma de mobilização do setor e na elaboração de uma política pública em contexto adverso. E o evento segue na vanguarda para apresentar ao público os nomes, os filmes, as conversas e os caminhos a serem percorridos nessa nova e estimulante trajetória que a produção deverá seguir na próxima década e evidencia a forte presença de filmes dirigidos por pessoas negras, trans e indígenas, a proliferação de coletivos criativos vindos de outras áreas artísticas para além do cinema, e a experimentação de formatos, linguagens e espaços de exibição serão fundamentais para se compreender a amplitude dos conceitos tratados nesta edição da Mostra”.
A coordenação curatorial do evento é assinada pelo crítico Francis Vogner dos Reis, que divide com a pesquisadora Lila Foster e com a Camila Vieira a seleção de longas-metragens. A coordenação curatorial de curtas é da Camila Vieira com atuação na seleção da Mariana Queen, Pedro Guimarães e Tatiana Carvalho Costa. Os filmes estarão distribuídos nas seguintes mostras: Homenagem, Aurora, Olhos Livres, Cinema Mutirão, Autorias, Foco, Panorama, Foco Minas, Praça, Formação, Sessão Debate, Jovem, Valores, Regional e Mostrinha. Para ampliar a experiência, vários dos filmes contarão com debates nos Encontros com os Filmes, tendo a presença de diretores, equipes de produção e críticos convidados.
A Mostra de Cinema de Tiradentes sempre deu trabalho a seu Júri Oficial. Como premiar um filme e deixar o outro de lado? Este ano, cinco pessoas são responsáveis por escolher os “melhores”. A montadora Cristina Amaral, a diretora Dácia Ibiapina, a pesquisadora Ester Marçal Fér, o jornalista GG Albuquerque e o crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. Já na integração do Júri Jovem temos Giuliana Zamprogno – 23 anos, estudante do 7º Período de Cinema e Audiovisual – Licenciatura | Universidade Federal Fluminense (UFF); Iara Letícia – 26 anos, estudante do 6º Período de Teatro Universitário | Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Lauren Mattiazzi Dilli – 23 anos, estudante do 7º Período de Cinema e Audiovisual | Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Leonardo Amorim – 24 anos, estudante do 2º Período de Arte Dramática | Escola Técnica de Artes da Universidade Federal de Alagoas (ETA-UFAL); e Quemuel Costa – 23 anos, estudante do 9º Período de Teatro – Licenciatura | Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A Mostra Aurora de 2023 é composta por longas-metragens do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, da Paraíba, do Distrito Federal e do Paraná. É interessante perceber entre os sete filmes uma mistura entre encenação – algo criado como espaço de interpretação –e a observação. Seria tentador cair no que poderíamos chamar de influências do gesto documental na ficção ou da construção da cena no documentário, mas o que os filmes mostram vai um pouco além desses pressupostos. Cada um – cada filme – propõe o seu jogo.
Ainda que todos os cineastas sejam estreantes na Aurora, alguns já passaram pela Mostra Foco (competitiva de curtas) e foram premiados. Em 2017, Leonardo Mouramateus saiu vencedor com “Vando Vulgo Vedita” (codirigido com Andréia Pires), Thomas von der Osten também ganhou o Troféu Barroco com o curta “Vó Maria” (2011) e Nathalia Tereza exibiu “A Outra Margem”, na Foco de 2015. Apresentando seus primeiros longas-metragens, figuram Amanda Devulsky com “Vermelho Bruto” (DF), João Maria Peixoto com “Xamã Punk” (RJ), Tiago A. Neves com “Cervejas no Escuro” (PB), Nathalia Tereza e Thomas von der Osten com “Solange” (PR). Estreando seu segundo longa, João Dumans, que dirigiu “Arábia” (2017) em parceria com Affonso Uchôa, aparece no Aurora este ano com “As Linhas da minha Mão”; Leonardo Mouramateus, que realizou “António Um Dois Três“(2017), estreia agora com “A Vida São Dois Dias”; Rafael Saar, que já fizera “Yorimatã” (2014), nos traz “Peixe Abissal”.
São todos filmes diferentes entre si, mas que se aplicam com radicalidade na construção de um tempo singular, um tempo da ficção (que não necessariamente lida com expectativas) e do documentário (na respiração mais livre dos eventos à frente da câmera). Com dois filmes dedicados a artistas brasileiros, “As Linhas da minha Mão”, de João Dumans, é um sutil mergulho na vida da atriz e performer Viviane de Cassia Ferreira, e “Peixe Abissal”, de Rafael Saar, sobre o músico Luís Capucho. No filme mineiro, a relação entre a vida e a imaginação da artista vai assumindo uma feição lenta, uma aproximação que primeiro se dá com a vida, mas que culmina na obra da artista. Em “Peixe Abissal”, fantasia, biografia e desejo estão atrelados desde o princípio à construção de um personagem (e de um mundo) em um cotidiano atravessado por um imaginário poético e pela arte. Dar conta do artista é também dar conta de suas fantasias, e o filme vai amalgamar esses dois registros, criando entrevistas, documentando performances.
“Vermelho Bruto”, de Amanda Devulsky, radicaliza o uso das imagens amadoras e domésticas, ao trazer esses registros de forma caleidoscópica. A voz das mulheres que integram a sua trama ordena um mundo das imagens que mostram a vida em suas parcialidades. Esses registros amadores feitos pelas personagens trazem a marca desse gênero “amador” – o registro urgente, o cotidiano – sem que recaiam necessariamente no autorretrato. No gesto de se filmar, há sempre algo que se cria e se documenta.
No campo da ficção, o amadorismo também tangencia o paraibano “Cervejas no Escuro”, de Tiago A. Neves. Uma mulher em luto decide fazer um filme e mobiliza a cidade em torno do seu projeto. Ora making of da empreitada, ora o filme propriamente, “Cervejas no Escuro” tem muito do imaginário sonhador da teledramaturgia que encontra o “filme de processo”. O trabalho de Tiago A. Neves revela um tipo de cinema comunitário, resiliente e em “mutirão” que já se tornou uma marca do que o realizador já fez em outros projetos de filmes e festivais (Cinema Instantâneo e Cinema no Meio do Mundo) juntos a seus eventuais parceiros em várias cidades da Paraíba nos últimos anos.
Em “A Vida São Dois Dias”, de Leonardo Mouramateus, o romanesco episódico de dois irmãos gêmeos, entre Brasil e Portugal, é atravessado por acontecimentos absurdos, experiência fraturada pela diferença de lugares em que cada um vive, mas também pelo universo de fantasias particular de cada um. É um filme de personagens, mas também de atores e atrizes: a variação das performances (e personagens) da atriz Mariah Teixeira é tão vertiginosa quanto os paradoxos entre os irmãos. É uma rara comédia no Aurora, que aqui toma emprestada uma estrutura lubitschiana em que o humor vem da força do gesto (do personagem e também da montagem) e da incongruência entre todas as coisas.
Também atrelado ao universo de sua personagem, “Solange”, de Nathalia Tereza e Thomas von der Osten, constrói sua personagem principal em uma composição de traços de seus traumas e desejos no reencontro de Solange com um grupo de amigos da cidade de onde partiu. O filme, ainda que tenha um traço comum do cinema paranaense contemporâneo, qual seja, o gosto pela dramaturgia cênica, tem uma singularidade muito evidente. A proximidade da câmera com a personagem faz uma espécie de retrato em movimento que aos poucos vai compondo uma abstração no jogo com o fora de quadro.
Por fim, “Xamã Punk”, de João Maria Peixoto, performa um mundo pós-apocalíptico enquanto uma equipe de filmagem documenta as ruínas e os seres que habitam o fim do mundo. Há um tanto de paisagem distópica (com ironia) e um tanto de experimentalismo in transe que possui sintonias com filmes recentes como, por exemplo, Canto dos Ossos (vencedor do Aurora, em 2020). A ascendência mais longeva de Xamã Punk é do experimental dos anos 1970, sob as influências de uma imaginação contemporânea imersa no xamanismo e nas cosmogonias sincréticas.
Em um ano em que pensamos os esforços coletivos do cinema em diversas searas, esses filmes nos dão subsídios para pensar uma variedade que expressa a complexa trama do cinema brasileiro. Vários são os caminhos; diversos são os resultados. Cada filme apresenta um trabalho e cabe à Mostra colocar isso em evidência. Ainda que as políticas públicas sejam fundamentais, as ideias e as práticas não nascem necessariamente daí. O cinema brasileiro está repleto de casos exemplares de liberdade e resiliência, de experiências que podem e devem ser potencializadas, seja por iniciativas políticas, seja por empreitadas de independência radical, seja pelo entusiasmo crítico. Os filmes da Mostra Aurora deste ano nos dão muito a ver e a pensar.
- “A vida são dois dias” (2022), de Leonardo Mouramateus
- “As Linhas da Minha Mão” (2023), de João Dumans
- “Cervejas no Escuro” (2023), de Tiago A. Neves
- “Peixe Abissal” (2023), de Rafael Saar
- “Solange” (2023), de Nathália Tereza e Tomás Osten
- “Vermelho Bruto” (2022), de Amanda Devulsky
- “Xama Punk” (2022), de João Maia Peixoto
Além disso, a Mostra Praça | Longas, apresenta os seguintes filmes:
- “A Filha do Palhaço” (2022), de Pedro Diogenes
- “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” (2023), de Pedro Bonz
- “Diálogos com Ruth de Souza (2022), de Juliana Vicente
- “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor” (2022), de Alfredo Manevy
O PORQUÊ DA HOMENAGEM POR FRANCIS VOGNER DOS REIS
Nas versões presencial e online, a Mostra Homenagem é a oportunidade de ver reunidos os filmes da dupla de homenageados Ary Rosa e Glenda Nicácio. Reunimos seis filmes, quatro que já foram exibidos na Mostra de Tiradentes, entre eles dois que tiveram suas estreias na Mostra Olhos Livres (Até o Fim e Voltei!), e dois filmes recentes que estreiam na Mostra este ano (Mugunzá e Na Rédea Curta).
Quando “Café com Canela” estreia em 2017, o impacto é grande, ainda que (quase) discreto na sua crônica sobre um grupo de pessoas de uma mesma localidade. Impressiona como Glenda Nicácio e Ary Rosa conduziram um retrato coletivo com um intransigente prazer, o que soou para alguns desatentos como aparente displicência. Havia ali um filme com adesão irrestrita à ficção, um exercício raro de uma fabulação que investia ao mesmo tempo na fabulação via relato de atrizes e atores, na prosódia que deixava claro a força não dissimulada do texto escrito (e um momento que o efeito do documentário e a rarefação causava sensação na ficção), uma visualidade espacial que misturava cenários internos estilizados e locações reais das cidades de Cachoeira e São Felix, uma câmera que procurava os pontos de vista mais inusuais e uma montagem que investia no lúdico, sem receio da emoção. O filme vinha do Recôncavo Baiano e era a primeira direção da dupla pela Rosza Filmes.
“Ilha” (2018), no ano seguinte, reforçou essa impressão e radicalizou seus procedimentos que se fazem com belas discrepâncias: atores profissionais e não profissionais, planos de longa duração e montagem de ritmo inaudito, planos de composição mais clássica e outros de perspectiva instável, um uso inovador da câmera subjetiva, deixando ainda mais complexa a trama de pontos de vista que estabelece conflitos que entendem o cinema como aquilo que pode dar imagem sobre as feridas históricas. A contradição tem a força de uma avalanche. Um filme sobre cinema, bonito e cruel, triste e desejante, entre o passado e o futuro.
A relação entre passado e futuro está em “Até o Fim” (2019) e “Voltei!” (2020). Em Até o Fim temos um bar numa praia como cenário de um reencontro entre mulheres da mesma família, irmanadas em suas semelhanças e diferenças. A emergência do passado na fala, na cumplicidade, nos segredos das mulheres. Em Voltei é o futuro em que a energia elétrica acabou e duas irmãs recebem a visita de um fantasma da terceira. Em ambos os filmes há uma dinâmica de desconcertante agilidade cênica, com uma câmera atenta em uma espécie de vibração física na intensidade das atrizes, cortes inusuais e uma economia de espaço radical.
Em “Mugunzá” (2022), que abre o festival, vemos um trabalho que assume com mais força a teatralidade já presente em Voltei e Até o Fim, mas aqui se faz como um musical em que as 13 canções são interpretadas por Arlete Dias (grande atriz presente nos filmes anteriores) e Fabrício Boliveira. Concentrado na dupla, no filme Boliveira interpreta cinco homens que passaram pela vida de Arlete. A radicalidade cênica de Mugunzá se dá tanto por uma forma dramatúrgica – o trágico erigido sobre o universo das festas populares do Recôncavo – quanto pela mise-en-scène em que a espacialidade não dissimula uma cenografia que aposta na força do lastro teatral (de palco).
Já Na Rédea Curta (2022) é um longa-metragem com as personagens de Mainha (Sulivã Bispo) e seu filho Júnior (Thiago Almasy), da websérie de humor homônima, sucesso baiano na internet. No filme, Mainha e Júnior vão atrás do pai do rapaz em Cachoeira. O filme é o encontro da Rosza Filmes com as personagens já muito populares de Sulivã Bispo e Thiago Almasy. De Cachoeira e Salvador. No entanto, há uma diferença entre os vídeos populares. Na Rédea Curta e o filme Na Rédea Curta: a versão longa-metragem possui a loquacidade e o apuro visual da Rosza Filmes. Um dos grandes feitos do filme é a notável dinâmica entre o ritmo do humor de Bispo e Almasy com o tempo cênico da dupla Nicácio e Rosa, além, claro, de trabalho delicado e vigoroso com as atrizes e atores. Na Rédea Curta ainda traz no elenco Zezé Motta, Jackson Costa, Cristina Pereira, Luciana Souza, Arlete Dias, Edvana Carvalho, Genário Neto, Cristian Bell, Psiti Mota, Alan do Carmo, Rita Batista e Telma Souza.
MOSTRA OLHOS LIVRES
Na mostra Olhos Livres, os curadores, Francis Vogner dos Reis, Lila Foster e Camila Vieira, definiram como apresentação o seguinte:
Em seu histórico dentro da Mostra de Cinema de Tiradentes, a Mostra Olhos Livres abarca longas-metragens que propõem diferentes modos de criação no cinema, a partir de estilos diversificados e procedimentos estéticos que envolvem uma mirada mais livre e inventiva no modo de fazer cinema. Os enfoques e as abordagens podem ser radicalmente diferentes entre um filme e outro da seleção, mas é justamente a variação de caminhos que desenha o espírito da Mostra Olhos Livres.
O documentário paraense “Terruá Pará”, de Jorane Castro, abriga uma estrutura circular que começa e termina com imagens da floresta. A força da natureza também se impõe pelos sons que dela derivam e marca presença nesta espécie de investigação observacional das manifestações culturais do Pará. Imersos em um rio, homens experimentam sons com o bater das palmas na água. Ouve-se o canto dos pescadores. Um grupo de brincantes festeja com Boi-Bumbá. Aos poucos, diferentes músicos falam sobre a singularidade cultural paraense, enquanto cantos, danças e ritmos são apresentados em meio à paisagem amazônica.
Helena Ignez e Paula Gaitán voltam à seleção da Olhos Livres, após a experiência da 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, quando ambas tiveram seus respectivos longas selecionados – “Fakir” e “É Rocha e Rio, Negro Léo”, em 2020. Uma viagem ao Marrocos é o ponto de partida da verve oswaldiana de A Alegria é a Prova dos Nove, de Helena Ignez. Das memórias de juventude entre uma artista sexóloga e um defensor de direitos humanos às vivências contemporâneas de mulheres, surgem conversas sobre o amor, a criação, a experiência do desbunde, o autoconhecimento pelo prazer do corpo e o fazer artístico. Já Paula Gaitán faz de O Canto das Amapolas um exercício complexo de alteridade com as recordações de sua mãe, os desejos comuns de outras mulheres e os desdobramentos históricos que estão implicados nas memórias individuais. A voz da diretora que interpela a sua mãe, misto de ternura e tensão, é o fio estruturante de um filme que é antes de uma condensação de trajetórias de vida, mas a busca por essas personagens e as imagens e sons capazes de acompanhá-las.
A ficção goiana “Cambaúba”, de Cris Ventura, assume a leveza e a despretensão das conversas que surgem ao caminhar pelas ruas e pelas calçadas de um bairro, de uma comunidade. A diretora parte do encontro de moradoras da Rua de Cambaúba para partilhar vivências e conhecimentos sobre o que significa habitar aquela região, marcada por múltiplos cruzamentos culturais. A cidade – seus espaços, sua história – não antecede a vivência dessas mulheres e é também através da vida que toma forma o assombro de um passado violento e suas as formas de resistência.
Luís Rocha Melo dirige o documentário “O Cangaceiro da Moviola”, que recupera a trajetória artística do pernambucano Severino Dadá, importante montador de grandes obras do cinema brasileiro, como “O Amuleto de Ogum” (1975) e “Tenda dos Milagres” (1977), de Nelson Pereira dos Santos. A trajetória de Severino Dadá é também sobre os percursos do cinema brasileiro, as trocas criativas e como o cinema não pode ser pensado sem a contribuição artística das diversas funções técnico-criativas. Severino marcou presença na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, quando seu curta-metragem A Nave de Mané Socó foi selecionado na Mostra Panorama, em 2020.
Após dirigir “Corpo Quilombo”, que integrou a Mostra temática Corpos Adiante, da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2019, Leonel Costa retorna ao festival com a ficção paulista “Alegorias”. Uma cidade que pulsa pela reverberação do samba e do carnaval é a paisagem onde acontece o drama de mulheres negras que buscam conciliar a rotina de trabalho com seus desejos de mudar de vida. Entre o mundo da branquitude de um empresário de um egoísmo violento e as conexões entre mulheres negras, diferentes entre si, mas cientes da construção de um passado-presente-futuro comum, Leonel Costa sedimenta um outro lugar para o cinema paulista, um cinema feito de forma independente, em parceria, e que celebra uma São Paulo vista de uma maneira potente e singular.
- “A Alegria é a prova dos Nove” (2023), de Helena Ignez
- “Alegorias” (2022), de Leonel Costa
- “Cambaúba” (2022), de Cris Ventura
- “O Cangaceiro da Moviola” (2022), de Luís Rocha Melo
- “O Canto das Amapolas” (2023), de Paula Gaitán
- “Terruá Pará” (2023), de Jorane Castro
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A temática “Cinema Mutirão” que orienta a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes aposta no necessário esforço coletivo para erigir bases novas e reforçar as estruturas resistentes, ainda que fragilizadas, do audiovisual brasileiro. Na 26ª edição da Mostra, não nos desviamos das discussões sobre os filmes e as práticas de profissionais de cinema, mas arriscamos fazer uma proposição ampla que chama para o debate todos aqueles e aquelas que querem colaborar para construir uma base sólida para a construção (e a reconstrução) do audiovisual brasileiro. Nos últimos anos, o apagão das instituições culturais e das políticas de fomento e incentivo, a redução drástica de público nas salas de cinema, a consolidação da hegemonia dos oligopólios dos streaming, assim como os cortes de financiamento para pesquisas, fragilizou o setor do audiovisual no Brasil do ponto de vista econômico, político, mas também simbólico. Por um lado, uma crise econômica; por outro, um projeto político federal de tentativa de desmobilização, neutralização e corte de políticas públicas. Entre uma coisa e outra, a pandemia.
Esse cenário que se efetivou catastrófico não impediu a permanência de uma resiliência que buscou alternativas à sua sobrevivência, que procurou não abrir mão das suas conquistas anteriores, ainda que insuficientes ou ameaçadas. Ao lançarmos o termo “mutirão” (cinema mutirão), olhamos para esse gesto coletivo que implica uma construção por meio da junção de forças em um contexto de precariedade. Com isso, não pensamos somente no esforço coletivo para a realização de filmes, mas no esforço coletivo de construção de novas bases para o audiovisual brasileiro. Muitos grupos de lugares diferentes e de campos artísticos distintos (dança, música, teatro) se uniram, por exemplo, para fazer audiovisual com os recursos dos editais emergenciais da lei Aldir Blanc, que, no seu caráter abrangente e flexível, trouxe algumas inovações nas obras, na forma de mobilização do setor e na elaboração de uma política pública em contexto adverso. Os editais emergenciais também apontaram para a importância da descentralização dos recursos e de processos menos burocráticos, permitindo um acesso mais amplo ao fomento à cultura. Há de se olhar para isso, pois nelas entendemos a originalidade de uma prática coletiva de grande empenho transformador.
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