Três Verões
Uma popular fábula de inversão social
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2019
Certas obras, devido ao fato de se comportarem como narrativas semelhantes, que parecem já ter sido vistas, necessitam por isso de um maior cuidado. De apurar o contexto a fim de sair do lugar comum. De transcender a zona de conforto e cômoda de se ter nas mãos um produto com a fórmula já pronta. Ainda mais quando o filme busca a questão social como condução em um limite tênue do popular escrachado e o cult antropológico. Sim, é quase sempre impossível obter um resultado unânime.
Em “Três Verões”, novo filme da realizadora Sandra Kogut (de “Campo Grande”), integrante da seleção competitiva oficial do Festival do Rio 2019, é proposto a naturalidade do cotidiano, que invoca a segregação de classes pela organicidade de sua câmera e principalmente pelo desprendimento interpretativo de Regina Casé, que mais uma vez encarna a personificação do popular (de colocações brutas, ultra verdadeiras e sem papas na língua – diz sem filtro o que vem à cabeça – inventando inclusive “soluções barateadas” de “sushi com salsicha vegetariana” – que cuida da casa como se fosse sua), como uma análise in loco e uma experiência quase laboratorial, como o sonho da casa própria (incluindo selfies no local – para assim ostentar aos outros o sucesso).
Isso basicamente justifica o primeiro parágrafo destas percepções, se lembrarmos que a atriz-protagonista viveu quase o mesmo papel em “Que Horas Ela Volta?”, de Ana Muylaert. Pode sim parecer uma continuação com nova trama, e, ainda que soe exatamente igual pela potencialização de se ter que ser um fidedigno retrato da sociedade (aumentando um ponto do tom), o longa-metragem, com toda sua teatralidade do intrínseco, permite atravessar a casca e sentir a ode-crônica crítica ao sistema político brasileiro, que faz com que os economicamente despreparados, os pobres à margem, que alimentam toda a máquina social dos ricos, precisem se desdobrar nas traquinagens “jeitinhos do se liga nos trinta” para sobreviver.
“Três Verões” investe em pontos fora da curva, saindo da padronização ao apresentar questionamentos sociológicos. Assim o público é remetido à essência causal de passados acontecimentos históricos, o êxodo rural, por exemplo. Apesar do filme focar na incompatibilidade distanciada e desencaixada de empregados que moram mais em um lugar “alugado” (e pago com trabalho) que suas próprias residências, servindo aos patrões com a falsa denominação de “família”, o tema do deslocamento de camponeses à cidade (e aqui, moradores suburbanos que migram às áreas mais ricas) é presente e visível. A artificial atmosfera narrativa, que se desenvolve no teatro filmado, é embasada quando o conceito ganha vida e substitui a forma.
É a estética da vida como ela é, dotada de dificuldades e caminhos mais tortuosos, já referenciada em “Domingo”, de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa; e “Benzinho”, de Gustavo Pizzi. É também a estética das relações de poder, vide “Casa Grande”, também de Fellipe Barbosa, e o documentário “Santiago”, de João Moreira Salles, sobre o mordomo da família.
“Três Verões” quer elencar características de comportamento popular. Como se fosse uma transposição cultural e suas tradições-crendices do sincretismo religioso (fazer um pedido jogando flores ao mar para Iemanjá). Dessa forma, esses seres mais vulneráveis conseguem “proteção”, nem que seja na mitologia enraizada, tendo que lutar pela lembrança de um empréstimo e aceitando “migalhas” advindas do “desapego” da “altruísta” patroa, que doa roupas usadas, mas não sabe qual é o lado da obra de arte de um hipster e moderninho artista de São Paulo (o famoso “white people problem”).
O longa-metragem ambienta-se em dezembro de 2015 e conta a crônica casual de doleiros e corruptos “moços da tornozeleira” em “tramas de porta fechada”. No meio disso tudo, os empregados que aparentemente não olham, não escutam e não falam. São vistos como robôs invisíveis não humanos sem cultura (e inteligência). Que existem em dois mundos. A projeção e a realidade. Esses ricos também, mesmo sem querer e perceber, transitam entre esses dois universos. De um lado a necessidade de gostar de uma ópera e manter as aparências das etiquetas sociais. Do outro, o elemento primitivo interno que desmascara a verdade (e que quando vem à tona libera o caos sem volta). Com seus polvos e festas das “bodas de porcelana” (vinte anos) de casamento com champanhe “original”. “O importante é comemorar”, diz-se.
Mas “Três Verões” quer porque quer aumentar mais um ponto com piadas clichês dignas de “é pa vê ou pa comê”. Há um quê extra caricatural de Tom Cavalcante Ribamar, do programa “Sai de Baixo” e um que de Paulo Gustavo como Dona Hermínia, em “Minha Mãe é uma Peça”. É um filme de instantes-esquetes de família e não sei se proposital, mas nós percebemos as interpretações (nos afastando da imersão sugerida).
E então, o filme mergulha em outro filme. Literalmente em um portal de transição após conduções coercitivas e busca-apreensão pela Polícia Federal (até ela “laranja” pega de “gaiata”) das operações Lava-Jato. Quase uma referência direta a “Parasita”, de Bong Joon-ho. A protagonista inicia uma missão para “salvar a casa” (e o patriarca doente) e ao mesmo tempo é sugada à “boa vida” que era dos patrões. Os ratos agora fazem a festa. Experimentam mil soluções, entre tudo, alugar para cenários de filmes, bazar (“vendendo tudo – o patrão ficou maluco”), Airbnb e “fofoqueiros” passeios turísticos “prisão” vendidos a turistas.
“Três Verões” é uma comédia de situações que pincela dramas identificados por estereótipos condicionados. E que mesmo no final, com o proeminente sucesso, as grades estão ali. O olhar que enxerga apenas por frechas, como seres invisíveis espreitados esperando o chamado para servir. A mensagem que passa é que serão sempre coadjuvantes e nunca andorinhas que de verão em verão acreditam no futuro e na esperança de uma vida mais igualitária. A última cena nos mostra suas resignações sobre as condições que se encontram no momento.