Todos os Mortos
Um filme sem vida
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2020.
Antes de traçar linhas analíticas sobre todo e qualquer filme brasileiro, é necessário que se busque o olhar para dentro para assim estimular com um mais aprofundado estudo de caso e embasamento teórico, uma tradução do próprio povo brasileiro, que por sua vez desencadeia um espelho de temáticas, comportamentos típicos e características peculiares de sempre achar que a grama do vizinho é a mais verde; que precisamos importar tudo o que é estrangeiro; e que a crítica de cinema tem que potencializar o extremo paternalismo ao escrever sobre as obras. Sim, vamos ainda pela borda para falar sobre a presença nacionalista de “Todos os Mortos” na mostra competitiva oficial do Festival de Berlim 2020.
Dirigido por Marco Dutra (de “As Boas Maneiras”, “Trabalhar Cansa”, “O Silêncio do Céu” – estes co-dirigidos com Juliana Rojas); e por Caetano Gotardo (de “O Que se Move”, “Seus Olhos e Seus Ossos”), o longa-metragem mescla visões de criação de seus dois realizadores. Respectivamente citados, o primeiro envereda-se pelo cinema de gênero: terror psicológico e sensorial, já o segundo imprime uma imersão de sinestesia pessoal-existencial. E talvez seja isso que não equilibra a mistura. O que assistimos é água e óleo. Um fluxo contínuo narrativo de viés político pela conceituação metafórica da História do Brasil.
“Todos os Mortos” é a mise-èn-scene de um teatro ficcional que procura o realismo encenado do anti-naturalismo, mais perceptível pela mesma linguagem rebuscada do final do século passado. Só que o propósito objetivado vira contra os feiticeiros, muito pelo engessamento do próprio tema escolhido, tendo assim que “policiar” o roteiro com todos os politicamente corretos reinantes no contemporâneo do agora. A escolha dos diretores não consegue a credibilidade do acreditar. O público entende a proposta (até porque todos os diálogos são mastigados e minuciosamente explicados). Nós também captamos as referências de “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente, a “Os Outros”, de Alejandro Amenábar, e todos os simbolismos de ancestralidade negra, e da crítica ao racismo e à superioridade dos brancos.
Mas as intenções perdem na costura, que abre demais o decote. Sim, o representante de nosso povo quer voar alto demais, abrindo portas e esquecendo de fechá-las. Dessa forma, a estrutura narrativa sofre com os vazios, brechas e informações demais. Sabemos também que não se pode desassociar o cinema feito no Brasil da política, tanto que aqui as logos, especialmente a da Ancine, aparecem em sacos de café de uma fazenda antes da civilização condicionada da sociedade. Quando se tenta criar propaganda com toques panfletárias, então a liberdade da criação é interrompida.
“Todos os Mortos” é uma experiência viagem no tempo mais solta, como se fosse um retalho de ideias, improvisadas no calor da emoção. Que se mostra entre mundos. Fora de tom e condução. De enclausurar no presente o passado. Pela fotografia de organicidade caseira, com o coloquial dos closes no café torrado. E no descanso (olhando a chuva) pós trabalho de uma senhora negra idosa, músicas. É um filme novela, só que no cinema. E em estreia mundial em Berlim. A época, setembro de 1899, Independência, ambienta seus atores em um teatro filmado (na coletiva de imprensa, os diretores disseram que uma das referências foi o dramaturgo Bertolt Brecht (de “Mãe Coragem e Seus Filhos”). “Romanos foram da República ao Império e nós ao contrário”, ensina e “canta a pedra”.
O que é incomoda é o carregamento exagerado na interpretação (forçada e artificial) para expor a paralisia fisgada da aristocracia. Muros rachados, terras enterradas e desenterradas, troncos, naturezas solitárias, pieguices recorrentes, aparências e etiquetas, tudo indica a obrigação da mudança: do primitivo-selvagem ao progresso gentrificado. “A Europa lembrou São Paulo”, diz-se, provando por A + B que qualquer obra consegue ter pontuais maestrias, ainda que muito poucas, como a necessidade de categorizar citações: o poeta Cruz e Souza, que “mais entendeu os franceses”. Não há como não deixar de perceber uma “homenagem” ao realizador português Manoel de Oliveira. Sim, a alma do filme recorre ao tempo de Portugal, mas sem querer abrir mão da forma brasileira de produzir. De novo, não há como misturar: água e óleo, lembra?
“Todos os Mortos” não cria conexão sinestésica, pelo contrário, quer distanciar o público e inclusive suas personagens. “Não tem como cessar o barulho, porque é o progresso”, diz-se entre realidade e sonho. E complementa com outra maestria simbólica-política (assim como a cena da Igreja com todos internos e a naturalidade do ator mirim, “que já nasceu livre”): “Já é setembro, hoje é um ensaio, amanhã será de verdade”, à moda estrutural do filme “E o Vento Levou…”, de Victor Fleming. “Não é hora de ir pela mão dos outros”, “quem vai para a cidade, nunca volta”, frases como essas pululam durante todo o longa, soando ingenuidade com conforto. Podemos defini-lo como retrógrado e etnográfico pelos embates de sincretismo religioso. É também um filme que já nasce datado com seus rituais de cura, rezadeiras.
É um filme polca, gênero musical eternizado no Brasil por Chiquinha Gonzaga. Entre pessoas não são feitas de açúcar, luzes fugidias e “não adianta gastar amor com raiva”, vemos em “Todos os Mortos” uma liberdade poética, como o confronto-contraste dos prédios da “selva de pedra” que é São Paulo. Que oprime, cega e ensurdece. E que representa o resumo de todas as causas de nossas consequências, que somos nós, os mortos que ainda não caíram.
1 Comentário para "Todos os Mortos"
Uma pena… Apostava nesse. Será que a entrada de outro parceiro para dividir a direção deixou Marco meio desnorteado?
Particularmente, gosto da dobradinha que faz com Juliana , apesar de alguns deslizes…
Talvez eu queira muito acreditar em uma nova geração potente capaz de trabalhar com o gênero-terror- e conjugar nossos mais profundos traumas. O Brasil é o país ideal para esse estilo de filme. É só sair de casa que milhões de enredos pipocam.