Tintoretto – Um Rebelde em Veneza
Jogo dos sete erros
Por Pedro Mesquita
Festa do Cinema Italiano 2022
Durante a cobertura desta edição da Festa do Cinema Italiano, já tivemos a oportunidade de discutir sobre filmes cuja experiência só é agradável para um segmento particular do público (aqueles que gostam de, ou se identificam com, o assunto abordado pelo filme). “Ennio, o Maestro” é uma dessas obras: a nível formal, o filme é inegavelmente fraquíssimo; por outro lado, aqueles que se identificam com o seu conteúdo — fãs do compositor Ennio Morricone — poderão sair da sessão satisfeitos, pois, apesar dos seus inúmeros defeitos, o filme constrói um retrato bastante elogioso da sua personagem e lhe presta uma grande homenagem.
Àqueles que procuram neste texto uma detalhada análise de “Tintoretto – Um Rebelde em Veneza” o autor deverá um pedido de desculpas, pois, já que a experiência proposta por esses dois filmes é praticamente a mesma, não resta outra opção senão continuar o raciocínio — iniciado naquela crítica anterior — sobre o suposto valor dessas obras que recorrem apenas aos interesses particulares dos espectadores.
Todo ser humano tem, afinal, seus interesses particulares. Suponhamos, para fins de argumentação, que o interesse de um hipotético leitor seja o pintor renascentista que dá nome ao filme, Tintoretto. Esse leitor, que tem uma profunda admiração pela personalidade e pelas obras da personagem principal do filme de Giuseppe Domingo Romano, poderá muito bem considerar um grande filme na medida em que ele ratifica todas as suas opiniões pessoais sobre o artista: as suas virtudes, o seu talento e o seu estilo único são muito bem destacados pelo filme.
O hipotético leitor tem todo o direito de aprovar a obra nestes termos. Mas trata-se de um juízo de valor estabelecido a priori, pois a mera concordância entre o discurso apresentado pelo filme e as opiniões pessoais do leitor já lhe produziu uma sensação favorável à obra. E a crítica de cinema não pode, em hipótese alguma, trabalhar com apriorismos. Imaginemos, por exemplo, o quão limitada seria a análise de um crítico de cinema esquerdista que automaticamente aprova os filmes alinhados à sua orientação política; ou a de um crítico torcedor de um determinado time de futebol que automaticamente proclama como obras-primas os filmes que retratam positivamente o seu time; ou a de um crítico fã de um certo músico que… enfim, creio já ter tornado esta ideia suficientemente clara. Mas qual o problema comum entre todos os exemplos citados? Em todos os casos, o juízo de valor é dado a priori, pois o crítico prescindiu da forma fílmica para emiti-lo.
A forma é o que garante que um determinado filme seja incondicionalmente bom, que ele seja bom apesar das inclinações particulares daqueles que o veem. Não precisamos ser espeleólogos para concluir que “Il buco” (Michelangelo Frammartino) é o melhor filme do ano de 2022 até aqui, muito menos possuir um interesse na extração de minérios que acontece no interior das Minas da Panasqueira para concluir que “Wolfram, a Saliva do Lobo” (Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, 2010) é a grande obra-prima do século XXI até o presente momento. Pois, apesar do meu franco desinteresse na temática dessas duas obras, a maneira como elas foram trabalhadas — por meio da fotografia, do som, da montagem… — as tornou fascinantes, maravilhosas, dignas da mais concentrada atenção.
Por outro lado, a forma de “Tintoretto – Um Rebelde em Veneza” é tudo menos digna de aplausos. Ela é, inclusive, pouquíssimo distinta, praticamente idêntica à experiência do supracitado “Ennio, o Maestro” — daí a relutância em comentá-la. Mas façamos um jogo, a fim de elevar os ânimos: gostaria de propor ao leitor uma espécie de “jogo dos sete erros”, no qual o ganhador seria aquele a conseguir identificar o maior número de diferenças formais entre os dois. Este jogo, já avisamos, é de uma dificuldade imensa, pois ambos filmes são genéricos em um tal grau que parecem cópias de uma mesma matriz, produtos de um mesmo molde (o molde dos documentários genéricos televisivos). Em ambos verificamos as mesmas tendências: narração em off, imagens meramente ilustrativas e subordinadas à narração, entrevistas no estilo “talking heads”, retrato elogioso (para não dizer hagiográfico) da personagem principal, análises redundantes e superficiais das suas obras…
Da parte do autor que vos escreve, a única diferença possível de se destacar é o ritmo mais agradável de “Tintoretto – Um Rebelde em Veneza”, cuja montagem não replica o frenesi de “Ennio, o Maestro” e, portanto, permite uma melhor apreciação das obras mostradas no filme. De resto, trata-se da mesma abordagem padronizada e utilitarista da linguagem cinematográfica, que parece menos pertencer à mostra de um festival de cinema que à grade de programação de um canal televisivo educativo. A Festa do Cinema Italiano continua, portanto, com exceção do maravilhoso “Il buco”, a padecer de uma fraquíssima e esquecível seleção.