The Ugly One
Memória e Revolução
Por João Lanari Bo
Festival de Locarno 2013
Como seria tratar um tema desses, memória e revolução, num cenário sofrido e fragmentado como o Líbano? A região, definida pelos geógrafos como Oriente Próximo, é um caldeirão – o atual conflito em Gaza é mais um dos picos dessa trajetória que parece não ter fim, cujas origens também são indiscerníveis, camadas e camadas de agressões, territórios ocupados… o Velho Testamento bíblico pode ser lido como registro dessa saga. Nesse ambiente, a História – entendida no sentido mais literal possível – parece retornar incessantemente ao presente, realimentando disputas e mortes.
Diante de tudo isso, o cineasta-ensaísta Eric Baudelaire resolveu apostar numa narrativa estranha e única, uma mistura entre a experimentação de Godard, o jogo da memória e os sonhos, e a história de amor no meio de um país agonizante como os filmes de Alain Resnais – “The Ugly One”, finalizado em 2013.
Para construir o projeto, Baudelaire convocou um dos personagens mais insólitos e radicais da história do cinema – Masao Adachi, diretor, roteirista, ator, ativo na onda “pink” da filmografia japonesa, em particular na confluência entre política e erotismo. Em 2012 Adachi escreveu para o colega:
Em primeiro lugar, concordo em participar na colaboração que você propôs. As ideias já estão correndo na minha cabeça… vamos rever o procedimento que você apresentou em sua última mensagem: conhecerei o roteiro na íntegra, você só o receberá em Beirute, pouco antes das filmagens. Você conhece a “estrutura” do roteiro e sua premissa de abertura, mas não sabe em que direção, nem como, ele irá evoluir.
A meu ver, o roteiro será composto por duas histórias paralelas. A primeira é sobre o encontro de uma mulher um tanto perdida que limpa o lixo de uma praia de Beirute, e um terrorista que gosta de correr na praia de madrugada. Seus itinerários e preocupações se sobrepõem. Eles estão prestes a se apaixonar, mas…
A segunda história mostra um grupo de homens e mulheres que se reúnem num armazém abandonado durante a guerra. Lá fora, os combates se intensificam e os militantes reunidos no abrigo planejam uma operação terrorista. O bombardeio se aproxima de forma assustadora…
A mulher taciturna e o terrorista da primeira história fazem parte deste grupo, mas não está claro se a primeira história precede a segunda, ou se é o contrário…
A citação é longa, mas útil para situar o contexto de “The Ugly One”. Adachi, roteirista e colaborador próximo do virulento Koji Wakamatsu, estudou cinema na universidade Nihon, e combinava projetos experimentais com ativismo político. Integrava um coletivo que registrou os protestos contra o ANPO (tratado de cooperação e segurança EUA-Japão), em 1960. Em 1963 dirige “Closed vagina”, uma metáfora do impasse político à luz do fracasso dos protestos, com cenas de sexo solenes e ritualizadas. Em 1969, a comédia erótica “Female student guerrilla”, sobre cinco estudantes que resolvem fazer a revolução nas montanhas após as manifestações de rua contra o ANPO. Escreveu muitos roteiros, inclusive para Nagisa Oshima, foi ator (“O enforcado”, do mesmo Oshima) e, nas horas vagas, teorizava sobre cinema.
Mas, o que tem a ver um artista japonês com o Líbano? Em 1974, Adachi, exaurido do cinema, radicalizou: partiu para o Líbano, para juntar-se ao “Japanese United Army” (JRA) e à “Frente popular de Libertação da Palestina”, onde ficou por longos 28 anos. Uma espécie de cooperação internacional revolucionária. Os registros da epopeia de Adachi são ralos e duvidosos: envolveu-se na produção de filmes para propaganda da causa, e teve (supostas) relações com atividades terroristas. Teria tido alguma ligação com a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, a exemplo de Shigenobu Fusako, a famosa guerrilheira japonesa dos anos 70. O material audiovisual que produziu foi destruído por bombardeios, sobretudo durante a invasão israelense no Líbano, em 1982. Adachi sintetizou essa experiência em uma conhecida sentença: em vez de trocar a câmera pelo fuzil, por que não segurar um em cada mão?
Tal como “The Ugly One”, também está disponível no MUBI o doc-ensaio “A anábase de May e Fusako Shigenobu, Masao Adachi e 27 anos sem imagens”, que Baudelaire realizou em 2011 recriando rastros desse percurso. Adachi foi preso no Líbano e logo extraditado para o Japão, no ano 2000, devido às suas ligações com o JRA. Depois de ficar detido por um ano e meio, foi condenado e libertado com base no tempo que já havia cumprido. Desde sua libertação, ele voltou a fazer filmes.
Para chegar ao Líbano, a rota japonesa parece ser uma boa opção.