The Old Guard
O desafio moral da CIA
Por Vitor Velloso
Netflix
Se a produtora Skydance é conhecida por sua aventura vertiginosa no gênero de ação em Hollywood, é igualmente lembrada pelos abismos entre seus projetos que por vezes parece encontrar um aval formal para brincar no gênero (“Projeto Gemini”), em outros momentos apenas quer um retorno financeiro imediato (“Guerra Mundial Z” e “Baywatch”). Porém, é de se notar os acertos entre o casamento das duas contrapartidas em alguns filmes, como a nova trilogia da franquia “Missão Impossível”. Eis que temos… “The Old Guard”
“The Old Guard” quer ser um pouco dos dois, enquanto busca uma emulação da coreografia que consagrou “John Wick”, com desenhos de cena bastante nítidos, quer ser um produto de fácil integração no mercado. E não há grandes empecilhos para isso, visto que as franquias citadas possuem um retorno financeiro extraordinário e que o roteiro do filme é uma adaptação dos quadrinhos de Greg Rucka, o que atrai um público pro projeto.
A direção é assinada por Gina Prince-Bythewood e o longa conta com um elenco de estrelas, Charlize Theron (a favorita da ação contemporânea vide “Mad Max” e “Atômica”), Chiwetel Ejiofor e Matthias Schoenaerts.
Tudo funciona de maneira superficial: Quatro pessoas imortais, uma nova imortal surge, uma traição acontece, vingança. É uma estrutura narrativa típica de Hollywood, não há engenhosidade para se elevar o drama de alguns personagens, a própria imortalidade se torna um problema dramático, já que é muito mal explorada aqui, seja pelo clichê ou pela incompreensão do que a mesma gera. E se a coreografia poderia ganhar uma força extra a partir dessa questão, acaba se tornando uma muleta para expôr violência e tentar gerar uma piada ou outra.
A partir dos diálogos super-expositivos, que explicam o que acontece em cena, o filme passa a se desenhar como mímica da própria história, com o surgimento de frases de efeito que buscam um impacto no espectador, à la “Velozes e Furiosos”. Com tudo isso em tela, o jogo industrial fica mais claro, o exército americano é sacramentado na luta do Bem contra o Mal, onde a filmografia explora de maneira fetichista a geografia de seu “inimigo”, filma como se pudéssemos reduzir um país inteiro à aridez de uma montanha, uma catacumba etc.
Acompanhada da trilha dolorosa, que mistura um pop lento em meio às cenas de ação nada frenéticas, ainda que acreditem ser, a forma vai se diluindo em um velho esquema de múltiplos cortes, um desenho de violência próximo ao corpo, como “John Wick”, se esquematiza em torno de uma feição “Mestre x Aprendiz” e torna-se um buddy movie mal desenvolvido. A breguice toma conta do início ao fim e tudo que encontramos é uma feitura industrial de algo que vislumbra a violência a partir do santíssimo perdão da “boa vontade”. Todos estão se redimindo enquanto estouram cabeças, pois são as vítimas da perversidade do Estado unido à ciência, vil, do mal, cruel, que está aliada ao capital.
A proposta é muito clara, redimensionar os problemas da sociedade norte-americana e suas desconfianças com as instituições ao inocente agente da CIA que acreditava estar fazendo o bem, capturando assassinos imortais. E para provar isso, sacrifica um batalhão inteiro à serviço da ciência. O jogo moral é tóxico a ponto de mostrar o despreparo do Bem contra o moralismo do Mal, que se intensifica com pequenas junções progressistas que faz ao longo do filme, personagens livres em sua marginalidade, que podem se amar sem o desrespeito e o ódio alheio, mas que são submetidos à humilhações com a base do Estado Norte-Americano, a cena em si gera um diálogo que poderia ser brevemente poderoso, mas é tão recheado de clichês dramáticos que apenas configura uma reconciliação do mundo branco ao árabe, sempre o inimigo. Um reducionismo que soa assombroso conforme as diferenças culturais são extinguidas pelo longa.
Enquanto a CIA é vítima da ciência e do capital, cenas e mais cenas de ação mal filmadas, com cortes de dar dor de cabeça, transformam a mise-èn-scene em uma alegoria de frenesi sem harmonia, pois a compreensão torna-se um obstáculo, que já que tudo salta de um lado ao outro sem grandes importâncias na narrativa, a violência deve ser desenfreada, ainda que isso signifique um erro catastrófico de cálculo de ambas as partes.
Com sinuosos furos de roteiro e uma concepção reducionista do progressismo “social” frente ao conservadorismo econômico a CIA é a redentora de toda a violência, por sua ingenuidade, enquanto os imortais estão isentos de julgamentos por serem “atormentados” pela incapacidade de morrer e o exército americano está cumprindo ordens de um CEO e uma cientista. Um projeto anticiência, que valoriza a Inteligência norte-americana e põe em cheque o capital como a frente do “progresso”. A redenção está dada, a indústria deve ser acometida à julgamentos superiores à moral humana, a ciência é a inimiga e o redentor é o ingênuo. Cristão, pagão, progressista e liberal, com suas contradições e reducionismo, “The Old Guard” é um tiro de misericórdia no capital industrial desmotivado por razões concretas e quiçá religiosas.