Mostra Um Curta Por Dia 2025

Sugarcane

Padrão histórico

Por Vitor Velloso

Festival de Sundance 2024

Sugarcane

O padrão histórico católico e de homens brancos, bem como a utilização do nome de “Deus” para justificar todas as atrocidades e barbaridades contra povos — neste caso, nativos —, é uma constante ao redor do mundo. “Sugarcane”, dirigido por Emily Kassie e Julian Brave NoiseCat, conta uma história desconhecida por uma parcela relevante do público: crianças desaparecidas, abusos e racismo em uma escola indígena no Canadá, além da investigação contemporânea sobre esse passado não tão distante. Aliás, eram 108 escolas financiadas pelo governo no Canadá e 408 nos Estados Unidos.

O filme, que concorre ao Oscar 2025 na categoria de “Melhor Documentário”, possui momentos realmente horríveis de se assistir — desde uma mulher indígena explicando os abusos e atrocidades que viveu, justificando seu alcoolismo, até imagens de arquivo da escola católica e a leitura de respostas violentas de racistas assumidos, que culpam os indígenas pelos acontecimentos. A violência das imagens e dos fatos é verdadeiramente terrível, mas “Sugarcane” adota uma estrutura que não se limita apenas a se debruçar sobre os crimes cometidos e a iracunda fúria dos racistas que apenas querem apagar a história, a cultura e o povo nativo. O projeto decide mostrar também os conflitos pessoais entre familiares — como abandonos, traumas e alcoolismo — e consegue encontrar alguns respiros em registros que evidenciam a cultura indígena e seus cotidianos, indo além da investigação dos crimes cometidos. Dessa forma, parte da dinâmica presente na estrutura do documentário busca apresentar o universo dos personagens e da etnia, sem se restringir apenas às questões negativas ali representadas, o que permite a construção de um ritmo mais fluido para a obra.

Contudo, esse aspecto também representa um dos maiores pontos questionáveis do filme. Apesar de contar com uma direção de fotografia, assinada por Christopher LaMarca e Emily Kassie, capaz de compor planos de beleza inquestionável, a obra adota a estética televisiva padronizada da National Geographic, o que fragiliza drasticamente a construção crítica necessária para diferenciá-la de outros produtos audiovisuais. São planos repetidos, passagens rápidas por rituais, uma tentativa desnecessária de criar uma dinâmica dialógica por meio do plano-contraplano, momentos visivelmente encenados para gerar impacto dramático e a superficialidade na representação do universo retratado, que, na maioria das vezes — para não generalizar —, flerta com um tipo de exotismo objetificante em relação aos seus sujeitos fílmicos. Vale ressaltar que isso não significa que os diretores não tenham interesse ou preocupação com os personagens inseridos nesse recorte documental, mas há uma flexibilização constante que resulta em exposições breves, sem uma reflexão crítica aprofundada sobre a situação apresentada ou o contexto particular dos personagens. Essa abordagem padronizada acaba revelando uma obviedade: trata-se de um produto cinematográfico. Assim, surge uma sensação de artificialidade que retira parte do peso dos acontecimentos históricos, justamente por serem caracterizados dentro de uma lógica mercadológica.

Por outro lado, “Sugarcane” tem o mérito de ser didático ao apresentar uma questão histórica pouco conhecida por boa parte do público, facilitando a compreensão dos espectadores e ampliando sua circulação nos cinemas e na televisão. Essa é uma velha ambiguidade presente em muitos documentários indicados ao Oscar de “Melhor Documentário”: sua verve expositiva e seu caráter denuncista, ainda que superficial e com uma linguagem padronizada. Claro, difere de “Navalny” (2022), que, ao atravessar sua própria narrativa, se tornava uma mera propaganda oportunista, repleta de recortes, opiniões enviesadas e exposição de acontecimentos vistos sob uma perspectiva única, sempre elevados à categoria de fatos.

Neste caso, o filme de Emily Kassie e Julian Brave NoiseCat realiza uma denúncia formal sem precisar distorcer informações, pois se baseia em uma pesquisa aparentemente séria e no uso de materiais de arquivo que procuram corroborar os depoimentos dos entrevistados — sejam eles vítimas de abusos e crimes cometidos pelo Estado e pela Igreja ou familiares de sobreviventes. No entanto, há uma lacuna que permanece ao longo da obra. Por mais que haja um esforço para demonstrar a reflexão política e social, assim como o pragmatismo político — seja por meio do ativismo ou de ações diretas contra o apagamento dos acontecimentos e a cobrança de indenizações —, a presença dos culpados e acusados é particularmente escassa. Diferentemente de obras como “Tantura” (2022), de Alon Schwarz, ou “Shoah” (1985), de Claude Lanzmann — para citar apenas dois exemplos —, em que a presença dos algozes e criminosos enriquece a leitura crítica da realidade concreta, “Sugarcane” os retrata como um fantasma não curado e, muitas vezes, apenas sob uma ótica moral, o que é uma pena.

Não é necessário uma abordagem à la Frederick Wiseman, muito menos Jean Rouch, mas esse engessamento formal enfraquece um filme de suma importância, especialmente no contexto político internacional que o mundo presencia hoje. 

2 Nota do Crítico 5 1

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