Falta suíngue no Cha Cha Cha
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2018
Quase toda cinebiografia musical tenta sua reconstituição ficcional pelos moldes palatáveis, populares e narrativos de uma novela. Quase. “Simonal”, exibido no Festival do Rio 2018, após ter passado pelo Festival de Gramado do mesmo ano, ainda que facilitador em seus artifícios cênicos, difere-se por sua condução interpretativa, cujo protagonismo escalou o ator Fabrício Boliveira, que, optando por não “encarnar” literalmente o músico Wilson Simonal, conseguiu o desvencilhamento despretensioso de ter que ser por potencializar o brilho nos olhos.
É o que nas palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, em “O Sentido do Filme”, define-se por “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção.
“Simonal” pega carona no “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”, de Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, que estimulou o diretor (que trabalhou na pós-produção do documentário) estreante em um longa-metragem de ficção, Leonardo Domingues, a realizar a obra em questão aqui. Ele “descobriu a verdade atrás de tudo”. “É a história de uma ascensão em queda de um negro, pobre, que veio do nada e por sua voz chegou a ser um dos grandes artistas do Brasil”, complementa Leonardo.
É uma história da música brasileira na ditadura militar por um “tom de uma cuíca”. A narrativa desenvolve-se por imagens de arquivo, saturadas à nostalgia de um época glamurosa. A câmera acompanha, passeando por uma “classe artística inteira” e criando a sensação imersiva de pertencimento do espectador. De timidez e felicidade encenada. Era um tempo diferente, de “reunir a nata para um show surpresa”. “De celebrar a música e nosso encontro de um dos maiores cantores do Brasil”, o host faz sua apresentação e percebe a indignação dos outros culpando o artista. O público entende que é do fim ao início. Primeiro vemos a queda para depois entender a construção do sucesso.
“Simonal” é controverso, principalmente por abordar os boatos de um período sem defesas, que iniciou a ideia das “fake news”. O filme retrocede quinze anos para 1960 e a um “show para decolar”. Wilson Simonal nunca mudou seu jeito. Sempre foi transgressor, como pular na piscina e quebrar regras que “ninguém fez”. É seu início pré-fama e os testes musicais, entre personalidades, como Carlos Imperial (Leandro Hassum), Erasmo Carlos (João Sabiá), Miele. Tim Maia e Elis Regina. E o Clube do Rock. Sim, toda estrutura é muito encenada, ensaiada, caricata, anti-naturalista. Tipicamente um desenho mastigado ao público, porém esteticamente imagético (como os ângulos de jam sessions e ou as boas sacadas de criar paralelos com o timing da música – energia natural e edição ágil) em adequações adestradas, digressões-epifania, elipses temporais e “Broadway brasileira”.
Simonal é viril, marrento, arrogante, decidido, mulherengo, confiante, gosta de sexo forte por trás na cama e colocar propaganda para vender. E com “toda malandragem”. Ele transmuta-se e música “mais “pilantra e mais simplizinha. E patrocina a própria carreira solo. E com naturalidade desperta o que sempre soube ser, “Frank Sinatra do Beco das Garrafas”. A televisão é o próximo passo. “Quer ser mais consumido que Gomex”, diz o jargão da época. Entre contratos, lobbys, traições, e charmes, ele “se acha mais do que é”. “Minha sorte então mudou, porque mamãe passou açúcar em mim… Meu limão, meu limoeiro”, canções chicletes para divertir sem pensar. E gastos extravagantes.
“Conceito falso? Pilantragem leva felicidade”, diz. Lógico que com a fama aparecem as pedras sensacionalistas e “jornalistas racistas”, que enxergam “exibicionismo” em um “negão ter carro”. “Estou cansado de negro não poder fazer isso ou aquilo”, complementa. E por ingenuidade ou um lapso de luta social, Martin Luther King o faz ser preso no DOPS e degringolar sua carreira. “Panfletagem? Meu lance é música”, vela a Deus e ao diabo. Para sobreviver e cantar, tudo tem um significado. Amigos começam a “pedir coisas” e padroniza “ritmo e refrão e que se escafeda a letra”. Segue o estilo. Trabalha igual “a uma mula”.
“Simonal” excede os gatilhos comuns, que ficam simples demais. E por inocência (“irresponsabilidade e arrogância”), pede um favor a quem não deveria. E assim, o incidente, que ficou famoso e manchou sua história, manipulou e deturpou a verdade. Só que, ainda que julgado inocente, uma vez preso, sempre condenado. E uma voz de ouro encontra a decadência eterna e o ostracismo (a “morte histórica”), sem conseguir mudar a opinião pública e “colocar para fora a energia que ninguém resiste”. Perdoaram Elis e ele não. Até sua morte em 2000, tentou provar provar sua inocência. Em vão. Sim, uma época mudou tudo. Quem não lembra do ator Mário Gomes e o boato de ser “cenourinha”? Um filme que tinha tudo para decolar, mas faltou suíngue.